Em tradução (Dialetos)

20/07/2018

Foto: Fra9119/ Shutterstock.com

 

Ah, crianças, tanta coisa…

 

O texto do mês passado, o da Mafalda, eu deixei prontinho ainda antes de viajar. Passei mais de um mês fora, Itália, culminando com uma semana na Trieste Joyce School. Tanta coisa…

E pra breve tem tanto mais… 

Dublinenses está na boca do forno; a poesia de Eliot vem logo. Caraca, meu próprio livrinho de contos está pra aparecer!

Mas por hoje, por ora, estou na vontade de falar de Andrea Camilleri. 

 

Eu comprei Il Metodo Catalanotti, o último livro dele, em Roma (permissão pra se metidar um tantinho…?) semanas depois do lançamento. Privilégio. Um Camilleri novo é um acontecimento na Itália. E este, sendo mais um volume dedicado às “aventuras” do atípico inspetor Salvo Montalbano, é um acontecimento em todo o mundo da literatura policial.

Camilleri é dos grandes. E, desde que meu orientador eterno Carlos Alberto Faraco me recomendou a série Montalbano, é um dos preferidos aqui da casa. 

Os enredos são bizarros, os personagens são maravilhosos (ah, Catarè!), a técnica literária sempre está um passinho além da mera instrumentalidade e da criação de suspense. Ele se diverte. Abarrocadamente. E nos divertimos nós com ele.

Mas acima de tudo tem ali um elemento que arrepia (de alegria) o linguista que há em mim. E que arrepia (de medo) o tradutor.

 

Porque os romances de Montalbano tendem a ser escritos, não em italiano, mas numa curiosa versão literária do dialeto siciliano nativo de Camilleri. E não se engane, apesar de os italianos usarem mesmo o termo “dialetto”, o siciliano, como o vêneto, como o triestino e assim por diante, não tem nadinha de mera “variação” de uma língua de base. São idiomas diferentes entre si e diferentes do italiano padrão (que em grande medida é um construto artificial, e recente). São línguas com uma história toda sua e com curiosas inter-relações, por exemplo, com o romeno, ou com o dálmata (uma língua extinta).

Pra mim, que venho de uma formação em linguística românica, só ler o siciliano de Camilleri já é uma imensa fonte de prazer.

 

Agora, diversão de leitor à parte, como traduzir?

E não me venham com ideias de intraduzibilidade! Camilleri foi e é muito traduzido. Ninguém vira um nome central da literatura policial sendo lido só pelos italianos. Mesmo no Brasil sua obra já está representada (ele escreveu DEZENAS de livros, então ainda tem chão… ainda tem chão…)

E fica todo o meu respeito aos tradutores. E um pouco da inveja. A gente somos, afinal, uma racinha que gosta de sarna pra se coçar!

(Mas fica também a minha inguinorância… nunca li as traduções, nunca curiosei a ponto de ir ver como eles e elas lidaram com os problemas… movido pela tal invejinha…?)

 

E fico pensando…

 

1. Traduzimos Camilleri pro português (ou qualquer outra língua) e pronto? Afinal se o siciliano é uma língua plena…. é igual o italiano: língua-fonte!

(Ok… mas há que se lembrar que Camilleri não escreve para a Sicília. Ele escreve e, apesar de ser publicado por uma editora palermitana, é lido ansiosamente em toda a Itália. E sabe muitíssimo bem disso.

Ou seja, ele escreve pra um público que espera esse estranhamento diante da sua linguagem e se diverte (como eu) com ele e com ela. Como manter isso em tradução?)

 

(E há que se lembrar também que ele não escreve em siciliano. Mas numa singular criação sua, uma espécie de siciliano literário pra uso de toda a itália. Isso tem alguma chance de se salvar em outra língua? E de manter aquele encanto?

E sua literatura sobrevive sem isso?

E continua sendo sua?)

 

2. O que fazer com a insana complexidade de usos de língua e dialeto nos seus romances? Se na tetralogia napolitana de Elena Ferrante, por exemplo, essa situação fica bem delineada, apesar da pouquíssima penetração do napulitano real, o que fazer com a dança dos personagens de Camilleri entre dialeto, dialeto italianado, italiano dialetal e italiano padrão… Às vezes tudo na mesma página! E normalmente marcando uma consciência muito aguda de lugares e hierarquias sociais…

Isso é mera “cor local”?

Se sim, precisa ser mantida?

Se não, precisa ser mantida?

Quanta informação sobre personagens e relações entre personagens se perde se eu apago as hábeis transições de uma língua para outra que tantas vezes marcam a opinião de uma pessoa sobre o lugar da outra numa escala de, por que não, poder….?

 

Será que eu estou lendo Camilleri mais como linguista e tradutor do que como “leitor” de policiais? 

Será que estou enxergando sobrancelha em ovo?

 

Eu vou deixar só interrogações aqui, agora. E vou deixar só a afirmação (por sua vez) de que essas todas perguntas se colocam aqui numa versão radicalizada, devido à complicadíssima (mas nada “única”) situação sociolinguística da Itália, mas são no fundo problemas que tendem a pipocar em tudo que é tradução de prosa romanesca, por definição multivocal, multidialetal…

 

O que fazer com o fato de que a Noruega tem na verdade dois idiomas? E com o fato de que os Estados Unidos tem um “dialeto” marcado originalmente em termos de “raça”? E com o fato de a maioria das línguas europeias tem dois ou mais sistemas de formalidade/ coloquialidade usados ao mesmo tempo?

E os falantes codificam informação ao trocar entre línguas, dialetos e sistemas. Eles registram marcas, importâncias, escadas e escalas…

 

Ah, crianças, tanta coisa….

 

***

 

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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