Por Javier A. Contreras
Quando sento para escrever um novo livro, mais que uma ideia ou a sombra de uma ideia, o que geralmente me move é algum sentimento indefinido, uma inquietação, um buraco no estômago que não dá bem para explicar. A verdade é que não sei muito bem do que se trata o livro até começar a escrevê-lo. E, algumas vezes, mesmo com um punhado de páginas escritas, ainda continuo sem saber. Se será um conto, um romance ou simplesmente nada é algo que passa bem longe da minha cabeça no início. Para mim, é quase como andar de olhos vendados por ruas ainda desconhecidas. É um processo difícil e complicado, mas é o meu processo.
Com o meu novo romance, Crocodilo, não foi diferente. Eu escrevia naquele momento outro livro, de tema mais urgente, político, mas não conseguia levá-lo adiante por sentir que algo maior pedia passagem. Eu parava e pensava racionalmente o que poderia ser maior do que escrever uma história influenciada por essa distopia política que, naquele momento, estávamos apenas começando a viver no Brasil? Nada, eu respondia para mim mesmo. No entanto, não tinha mais jeito. Eu havia travado. Um dia, abri um novo documento no Word e o deixei ali, em banho maria, à espera. Tempos depois escrevi a primeira frase. E, ao contrário das outras vezes, tudo pareceu se encaixar depois de apenas dez palavras.
“Hoje, meu filho Pedro pulou da janela do seu apartamento”.
Pensei: é sobre isso que quero escrever? Sobre suicídio? Mas o que eu entendo sobre o tema? Aí lembrei de uma história antiga que havia escutado sobre um senhor de idade, um avô, que havia perdido a neta dessa forma. Esse homem, culto e de bem com a vida, de uma hora para outra, pareceu murchar. Envelheceu de tal maneira que parecia que uma parte dele havia morrido junto. Outras memórias surgiram, então, como os suicídios de dois jornalistas, colegas de redação, nos meus tempos de repórter policial. Depois, o suicídio de um amigo de juventude com o qual já não tinha proximidade. E de algumas outras poucas pessoas que conhecia vagamente. Além, é claro, das muitas personalidades que apareciam cotidianamente nas páginas dos jornais e na TV, sempre em matérias marcadas pelo constrangimento em revelar a causa da morte. Alguns artistas que eu admiro se mataram dessa forma: Ernest Hemingway, Kurt Cobain e Robin Willians. Pra citar apenas três.
Em uma breve pesquisa, percebi que essas histórias que faziam parte do meu pequeno círculo social também eram parte do cotidiano de dezenas de milhares outras pessoas no Brasil e no mundo. Pesquisas recentes, muito comprometidas pela falta de dados e estatísticas confiáveis — de 172 países no mundo, apenas 60 possuem dados concretos e algum plano estratégico de prevenção ao suicídio — me revelaram que cerca de um milhão de pessoas se suicidaram em 2015. Para 2020, estima-se em 1,5 milhão de suicídios, além dos cerca de 20 milhões que tentam se matar a cada ano. Os números podem ser muito maiores devido às causas das mortes serem muitas vezes, por vergonha da sociedade, camufladas pelos próprios familiares como morte acidental ou causa desconhecida, alertam as pesquisas.
Para mim, foi realmente assustador descobrir aquilo. Eu seria capaz de abordar esse assunto? E por quê? Não tinha respostas para aquilo e fiquei remoendo a ideia. Durante dias, tentei me colocar no lugar de uma pessoa que comete esse ato final. É uma péssima sensação. Desesperadora. Horrível. Então li com mais atenção a frase que havia escrito e percebi que aquele não era o meu caminho. E compreendi que em apenas uma frase eu tinha a síntese de todo o livro. Eu não queria contar a história do suicida, do filho. Eu queria contar a história dos pais do suicida, a história dos que permanecem. Então, novamente fiz o exercício de me colocar no lugar. E a sensação, por mais incrível que possa parecer, foi ainda pior. Muito pior. Perder um filho, da maneira que for, é uma dor indescritível que só quem passa por isso pode sentir. E perder um filho que se mata?
Foi então que eu entendi que o livro não era tão somente sobre suicídio ou sobre a dor dos que permanecem, mas principalmente sobre a complexidade das relações humanas entre pais e filhos. No caso do livro, Ruy, um veterano jornalista pragmático, tenta “apurar” com a raiva e a impetuosidade do repórter que fora um dia, o que teria levado seu filho Pedro, de 28 anos, a se atirar da janela do 11º andar do seu apartamento. Marta, a mãe intelectual e sensível, ao contrário, tenta controlar a dor e entra numa espiral de silêncio buscando a compreensão daquilo que ocorreu. Ambos, cada qual a sua maneira, procura respostas que podem não existir, que provavelmente não existem, em uma jornada de dor e sofrimento durante a semana entre o suicídio e a missa de sétimo dia do filho. Com isso, tentam fazer um acerto de contas com o passado, tentando achar nas entrelinhas da relação cotidiana que mantiveram com Pedro desde o dia do seu nascimento até o da sua morte, alguma coisa, qualquer coisa que os faça seguir em frente.
No fim de tudo, mais ciente da complexidade do tema, compreendi que o constrangimento das pessoas ao abordar o suicídio é, talvez, tão grande quanto o número de casos. E que iniciativas como o Setembro Amarelo, por exemplo, são fundamentais para que a sociedade possa debater sem medo ou vergonha algo tão complexo como o ato de tirar a própria vida.
Como disse o escritor e filósofo Albert Camus em O Mito de Sísifo, epígrafe que uso no livro, “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. E nesses novos tempos de redes sociais, de relacionamentos superficiais e de isolamento humano que vivemos, precisamos sim falar sobre o suicídio. Mais do que nunca.
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Crocodilo chega às livrarias no dia 15 de outubro e já está em pré-venda.
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Javier Arancibia Contreras nasceu em 1976 e foi repórter policial. Escreveu um livro-reportagem e três romances. Foi finalista dos principais prêmios literários brasileiros, como o São Paulo de Literatura e o Jabuti. Em 2012 foi escolhido pela revista literária inglesa Granta como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. Também foi finalista duas vezes do Prêmio Internacional Leya, a última em 2018 com o original de seu novo romance, Crocodilo.