Um livro quase meu

23/09/2019

Foto: Família Kleinmann

 

É muito difícil para um editor escolher um livro predileto dentre os que publicou. O mais comum é respondermos à pergunta, tão banal, com a resposta chavão que a questão merece: “Como um pai, um editor não consegue escolher uma filha ou um filho em detrimento dos outros.”

Talvez essa questão tenha ficado mais fácil de responder depois de publicar O garoto que seguiu o pai para Auschwitz, de Jeremy Dronfield, pelo selo Objetiva.

Cresci com o peso da história de meu pai. Por muito tempo lidei com o silêncio dele, as dúvidas que circundavam a sua tristeza, das quais sabia apenas que se originavam, em grande parte, do fato de ele ter sobrevivido, saltando do trem, a pedido do seu pai, o meu avô Laios, que sem forças para fugir foi levado a Bergen Belsen, onde morreu de tifo ou de inanição.

Pode ser que naquela época eu nem conhecesse a história completa. Sabia apenas que ele, meu pai, sobrevivera à Guerra e que meu avô, que fora levado junto com ele, nunca voltou. Mais tarde, com dezessete anos, é que vim a saber de quase toda a história, após um jantar de shabat quando assistimos a um documentário na TV, O mundo em guerra, creio que narrado em português por Walmor Chagas. Após ver a história de outros judeus mortos, meu pai resolveu contar para a família — eu, minha mãe e minha então namorada Lili — o que lhe sucedera durante a Guerra.

Desde então, continuei a lidar com o silêncio e a constante tristeza dos seus olhos, mas sabendo a origem de tudo. Dizer assim, a origem de tudo, parece um pouco exagerado, mas não é. Para quem herdou o sofrimento da guerra, aquelas poucas palavras do meu pai tiveram o impacto do Big Bang, da criação do mundo, da origem das espécies, dos seis dias da labuta divina, enfim, de um infinito começo.

Escrevi um livro infantil (mas nem tanto) chamado Minha vida de goleiro, no qual descrevo o que lembrei daquela noite. Tentei saber mais, mas meu pai me contou apenas uma ou outra história além daquela que conheci na noite de shabat, fez uma ou duas correções, que eu não tive coragem de transferir para o livro. Descobri uma imprecisão e, mesmo assim, não atualizei meu texto. Talvez porque a alegria que eu esperava dar a meu pai com a publicação não foi completa. Ele se alegrou apenas temporariamente, pediu que eu traduzisse o texto para mandar para suas irmãs, falou num almoço que aquela tinha sido a maior alegria de sua vida, mas logo depois a esqueceu.

Tentei escrever mais sobre ele. Em alguns contos de um outro livro que publiquei, Discurso sobre o capim, ele aparece com destaque, especialmente no texto “Acapulco”, quando incluí o relato de uma longa viagem dos meus pais, em paralelo com a história de John Weissmuller, o ator mais lendário na pele de Tarzan. No conto, um Weissmuller que não consegue deixar de ser Tarzan, ou um Tarzan que envelhece até morrer e ser enterrado quase que num pasto em Acapulco — cidade onde ocorreu a filmagem mais gloriosa da vida do ator —, é uma metáfora da tristeza e da morte vagarosa que tomavam conta do meu pai, anos depois da alegria fugaz com o meu pequeno livro de estreia.

Escrevi um outro conto, chamado “Pai”, e tentei escrever um romance, do qual tenho duzentas páginas, inconclusas e imperfeitas, debaixo de um bonito título: “Luar ausente”. Mas nem o conto nem o fracassado romance têm qualidade equivalente ao meu esforço para preencher aquele silêncio todo, com o qual me vi crescer.

Por isso publicar o livro de Jeremy Dronfield foi tão importante para mim. Nele uma história que começa muito diferente da do meu pai, com um filho recusando a possibilidade de escapar de Auschwitz e decidindo seguir seu pai para o campo, onde em princípio caminhariam para a morte, acabará tendo muitos pontos em comum. A história toda do livro é verídica. Trata-se de um livro de não ficção que retrata a trajetória da família Kleinmann, principalmente de Gustav e Fritz, sem nenhuma afetação. E as coincidências da vida desse pai e filho, com a de Laios e Andras, meu avô e meu pai, são imensas.

Gustav, tapeceiro como Laios, e seu filho Fritz são levados de Viena em 1939, inicialmente para o campo de Buchenvald. O livro narra em detalhes a vida nos campos, antes da transferência a Auschwitz, momento no qual o filho poderia não ter acompanhado o pai.

Relatos das técnicas de sobrevivência dos dois, incluindo a transformação do pai num “não-judeu” pela colaboração com os nazistas, são impressionantes. É impossível julgar o certo e o errado numa situação desprovida de qualquer humanidade.

Sem estragar a leitura de quem se interessar pelo livro, ouso contar apenas que a história dos dois acabará, capítulos mais à frente, reproduzindo em grande parte o que aconteceu com meu pai e meu avô.

Fritz, já mais próximo do fim da Guerra e após longa sobrevivência em campos de extermínio, está a caminho de mais um campo, quando acabará optando por aceitar o pedido do pai, saltando sozinho do trem, como André/Andras, meu pai, deixando Gustav/Laios dentro do vagão.

A vida dos dois se divide no momento em que Gustav não tem mais forças para fugir. Ele irá para Bergen Belsen, onde vê a chegada dos húngaros deportados em massa, apenas em 1944. Meu avô Laios/Luiz, de quem herdei o nome, pode ter sido um desses húngaros que Gustav observa chegando, e que são descritos em seu diário, que serviu em grande parte para a realização do livro. Imensa foi minha emoção ao ler essa passagem, tentando enxergar entre os figurantes o avô que não conheci.

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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