Hoje (dia 27 de setembro) eu dei aula pra uma turma de Crítica e Prática de Tradução IV aqui na Federal do Paraná. Levei cerca de uma hora e vinte pra citar o nome de Paulo Henriques Britto. Foi meu recorde no semestre. Inclusive porque essa foi a única vez em que eu citei o nome dele na aula de hoje.
Minha média é de três citações por dia, pelo menos, com a primeira ocorrendo nos primeiros vinte minutos da aula.
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Em algum momento do começo deste século eu li Enderby por dentro, de Anthony Burgess, na tradução do Paulo. Tomei uma pancada gigante. Aprendi horrores sobre representação da real oralidade brasileira, ri solto, e percebi pela primeira vez, de verdade, o quanto a tradução literária tinha campo de ação… e o quanto aquele sujeito era competente.
Acho que foi ali que eu pensei que podia querer fazer aquilo no futuro. E o futuro chegou logo.
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Em outro momento do começo deste século eu conheci pessoalmente o Paulo. Ele veio pra um evento aqui na UFPR e eu fiquei com a responsabilidade de lhe dar uma carona do aeroporto até o centro.
Cheguei lá, parei na porta do desembarque, e aí me deu um piriri. Pensei, Ave Maria, e se eu deixo o sujeito passar? Só tinha visto fotos dele em livros. E elas podiam ser velhas…?
Saquei do bolso meu poderoso palmtop (jovens, googleiem) e escrevi UFPR na telinha pra ficar segurando virado pros convidados. No trajeto do carro nossos assuntos começaram em palms (ele também era usuário) e terminaram com ele me recomendando de modo muito enfático que eu finalmente concluísse a leitura do Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein. (Anos antes eu tinha travado na hora que começa a parte de lógica dura… e não sabia que as últimas páginas iam me mudar a vida pra sempre.)
Obrigado.
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Em 2011 eu passei vários dias na casa dele no Rio revisando a minha tradução do Ulysses. Tive ali a melhor e mais sólida formação de tradutor literário que pude receber na vida toda.
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De lá pra cá, já passei várias noites lá na Gávea. E ele, aqui em casa. Meu wifi é seu wifi.
Numa das últimas vezes em que ele esteve aqui, leu comigo minha tradução em andamento da poesia de Eliot. Em voz alta. Foi bem incrível.
Obrigado.
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Um dos meus momentos mais trêmulos como tradutor foi quando fiz Vício Inerente, de Thomas Pynchon, ocupando o lugar tradicional do Britto. Não bastava estar lidando com um dos nossos autores do coração, eu estava sendo o substituto do maior tradutor de prosa do Brasil..
Estamos agora fazendo uma tradução juntos, pela primeira vez. Uma canção de Randy Newman, sobre a qual a gente quer escrever umas coisas…
Obrigado.
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Eu lembro de conversar com ele, acho que em Ribeirão Preto, na semana em que ele estava pra entregar o seu centésimo livro traduzido. Anos atrás. Vários anos e vários livros atrás.
O Paulo começou a traduzir quando eu tinha um ano de idade!
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Acabei de concluir, com o Walter Carlos Costa, da Federal do Ceará, a organização de um livro inteiro sobre o Paulo. Sai em breve pela EdUFSC.
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Lembro de várias noites ouvindo música na casa dele, com as partituras na nossa frente, cercados por todo tipo de troféu de todo tipo de prêmios e troféus: poesia, conto, tradução…
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Dia 30 de setembro, quando este texto vai ser publicado, é o Dia Internacional do Tradutor.
De minha parte, pouco me ocorre de mais sincero, mais comovido e mais direto do que agradecer, em nome de todos os leitores do Brasil, ao sujeito que é talvez nosso maior poeta em atividade, um prosador de mão bem mais que cheia (vem livro novo de contos por aí!), um tradutor de poesia incrível, um tradutor de prosa assombroso, autor de textos sobre tradução literária, formador de gerações de tradutores que querem ser ele quando crescerem, como eu.
Hoje, afinal é dia de todos os tradutores e de todas as tradutoras. Clube grande. Gente boa. Mas, aqui, neste texto, é dia d“O” Tradutor. Pessoa generosa como poucas, talentosa como quase nenhuma outra.
Paulo, obrigado por me apresentar esse mundo todo.
Obrigado por ter dado tanto a tantos de nós.
Obrigado por ser a demonstração presente do quanto a tradução literária tem a dar a todo um sistema cultural, e a cada leitor, a cada leitora.
Obrigado por tudo que você ainda vai fazer.
Parabéns pelo teu dia.
(p.s.: comprei o Songbook do Randy Newman; prepara o piano que quando eu for ao Rio no fim de outubro a gente se diverte!)
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.
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