Diários do isolamento #41: Alejandro Chacoff

02/05/2020

Diários do isolamento 

Dia 41 

Alejandro Chacoff 

 

Estou em Londres, tomando uma cerveja num terraço à beira do rio, tenho 25 ou 26 anos. O início na cidade foi duro, solitário, mas me acostumei, e agora ajo como se aquele início não tivesse existido. Destruo eventos do passado, seleciono e edito tudo sem culpa ou remorso. É nisso, afinal, que a escrita se baseia, embora eu ainda não saiba que essa faculdade destrutiva me será útil, quando dali a dois anos eu largar meu emprego para escrever. Ainda enxergo escritores da mesma forma que os outros os enxergam. São como os padres que de vez em quando encontro nos contos de Tchékhov: sujeitos em teoria admiráveis, mas também anacrônicos, tão remotos e deslocados no tempo que é difícil formar qualquer ideia concreta deles. Será justamente esse ar remoto, esse caráter anacrônico, que em algum momento começarei a invejar.   

Na minha frente há um sujeito loiro, acho que ele é sueco, discorrendo sobre uma ideia de negócio. Londres tem poucos dias de tempo bom por ano, e quando esses dias surgem – um sol frio dando um aspecto metálico ao Tâmisa – as pessoas ficam mais gregárias, talvez falem um pouco mais do que deveriam. O sueco tem muitas ideias de negócios, só precisa decidir em qual delas focar. Ele não esconde a sua megalomania. Dá de barato que a ambição desmedida é uma virtude – uma premissa que, a julgar pela reação plácida dos que estão à sua volta, não é tão descabida assim. Em poucos anos acharei o sueco ridículo, mas naquele momento exato o ouço com indiferença, prestando atenção nos passantes, nos outros grupos à beira do rio.  

Entre as suas ideias de negócio, porém, há uma em particular que de repente me chama a atenção. Ele quer desenvolver um software ou algum outro tipo de inteligência artificial para produzir ficção, o que ele chama de “boas histórias”.  Não entendo muito bem a motivação desse plano (que me parece o mais megalomaníaco de todos), e quando lhe pergunto, descubro que ele tampouco entende muito bem. Ou pelo menos não sabe articular com qualquer dose de profundidade o que lhe incomoda na literatura produzida por humanos. Vejo também que sequer tem um interesse (ou desinteresse) específico pela literatura em si; pois logo em seguida começa a falar de como daria para fazer algo parecido na música, por exemplo, usando o mesmo princípio de agregar dados e informações para depois combiná-los e recombiná-los em variações infinitas, todas mais sublimes e belas do que as produzidas por um cérebro humano.  

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Uma “máquina de literatura” não é uma invenção tão improvável quanto possa soar, e não me assustaria se, daqui a alguns anos, algum experimento desse tipo fosse realmente lançado no mercado. Seria um produto a ser vendido — assim como soylent, o superalimento líquido que elimina a necessidade de várias refeições — sob o pretexto de diminuir ineficiências. O corolário dessas invenções, porém, parece ser algo bem mais perturbador: uma espécie de repulsa ou vergonha pelas limitações humanas, por nossas imperfeições.  

A literatura, porém, nasce justamente no terreno fecundo de nossas imperfeições, de nossos defeitos morais e ambiguidades, das respostas psíquicas à decadência do nosso corpo. Nada mais paradoxal, portanto, que uma maquinazinha de produzir literatura que dispensasse com o elemento humano. A ideia do sueco, ventilada à toa numa tarde há mais de uma década, expunha tanto a essência da utopia tecnológica — diminuir ineficiências, reorganizar cadeias produtivas — quanto a gratuidade de sua direção, a ausência de motivos nobres por trás desse movimento. Não é surpreendente, sob essa ótica, que os slogans de grandes empresas tecnológicas soem sempre esvaziados, com imperativos vagos (compartilhe, não seja uma pessoa má, etc).  

Logo que o isolamento começou, a escritora Olga Tocarzuk escreveu um texto em que confessava certo alívio com o confinamento. Ela não desmerecia a tragédia da Covid-19, mas o mundo para ela tinha se acelerado demais, e a parada completa forçaria, talvez, um questionamento maior da direção em que todos caminhávamos. Ainda que eu suspeite que o desânimo de Tocarczuk com o mundo anterior ao da pandemia seja ubíquo, acho difícil que esse questionamento realmente aconteça. Mas a crise — com as suas imagens de finitude do corpo, as cenas diárias e irrefutáveis de cidades esvaziadas e hospitais lotados — nos lembra, da forma mais dolorosa possível, dessas limitações que somos aconselhados todo dia a ignorar; e isso talvez ajude a gerar um ceticismo necessário em relação às promessas supostamente utópicas da tecnologia. Ainda há um esforço propagandesco de interpretar a crise como só mais um passo tranquilo na transição para uma suposta economia virtual, mas a positividade forçada e um pouco cínica dessa mensagem é refutada constantemente pelas outras imagens sombrias diárias que a acompanham.

O sueco não sabia, mas a tal máquina de produzir literatura já existia, pelo menos no universo da ficção. Em seu romance “A cidade ausente”, o escritor Ricardo Piglia apresenta a “máquina multiplicadora de relatos” de Macedonio Fernández, um exemplo lírico da ideia embrionária que o empreendedor sueco mencionara naquela tarde em Londres. Macedonio cria a máquina a partir da consciência de sua esposa que morreu de câncer, no intuito de preservar a memória dela. Mas a máquina em certo momento se expande além de seu intuito original, sai do controle, misturando memórias pessoais com histórias oficiais do governo e de outras pessoas, em combinações e recombinações que a tornam, segundo o Estado repressor vigente, perigosa. Acaba como um item de exibição num museu. A máquina de Macedonio sempre me pareceu uma ode às possibilidades transgressivas da escrita humana, e não um símbolo de sua superação. Sempre a imaginei como analógica.

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Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983, e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde desde 2016 trabalha como crítico de literatura e ensaísta da revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. Apátridas, publicado pela Companhia das Letras, é o seu primeiro romance.

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