O transgressor lírico

10/05/2020

Foto de Chico Cerchiaro

As mortes são tantas nessas últimas semanas que perco as forças para escrever. Como se com cada uma delas morresse um pouco de nós. Hoje cedo, ao saber que Sérgio Sant’Anna nos deixou, me senti mais morto que vivo. Publico sua obra há 31 anos, idade de muitos colaboradores importantes da Companhia, um ano a mais do que a minha ao iniciar a editora. Tudo começou com A senhorita Simpson, um livro transgressor, engraçado e sensual. Talvez sejam esses os melhores adjetivos para a obra dele naquela época, embora cada leitor possa ter os seus. A capa de A senhorita Simpson deve ser, até hoje, uma das melhores da editora. O artista, João Baptista da Costa Aguiar, também já morreu, mas não de Covid-19!

Nos livros mais recentes de Sérgio o lirismo tomou conta, cada vez mais, até se exacerbar nos dois últimos contos, recém-publicados na imprensa — “Das memórias de uma trave de futebol em 1955” e “A dama de branco” —, em um lirismo de despedida. No penúltimo, uma trave que está para ser substituída vislumbra a escuridão da noite antes de um treino no qual talvez já não esteja mais em campo. No outro, um homem contempla da janela uma mulher de branco caminhando pelo estacionamento de seu prédio de madrugada. O narrador, ouvindo Satie, se imagina abraçado à misteriosa dama (a morte?) após usarem ópio, como ele se lembra de ter feito quando jovem, em Nova York. A velhice e o fim estavam presentes em muitas das últimas linhas de Sérgio, ou mesmo em suas entrelinhas.

A literatura como premonição? Talvez, mas de fato pouco importa, não é? Sérgio hoje está morto. Foi dos maiores escritores de língua portuguesa nas últimas décadas, e um dos grandes mestres com quem trabalhei.

Quando li O homem-mulher, um de seus livros mais recentes, me enchi de emoção. Sabia que tinha em mãos uma obra-prima de Sérgio Sant’Anna, e também da literatura brasileira contemporânea. Combinamos de ele vir a São Paulo, coisa que nunca esteve entre suas favoritas. Fizemos um passeio pela editora e, no departamento editorial, repleto de jovens editores, preparadores de texto e estagiários, pedi a atenção de todos e falei depois de apresentá-lo: “Meus amigos, vocês se dão conta de que estão conhecendo hoje um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, uma lenda viva, orgulho da Companhia das Letras? Se ainda não se deram conta, leiam imediatamente o livro que vamos publicar em breve e falemos...”.

Ainda viriam outros livros do mesmo nível e algumas reedições de obras que não haviam sido publicadas por nós.

Sérgio era tímido, e eu também não primo pela expansividade. Não nos falávamos com frequência, mas isso não serve para medir a enorme importância que ele teve em minha vida de editor.

Mais um dia de profunda tristeza para o Brasil.

*** 

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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