Por Paula Fábrio
Um escritor, antes de se saber como tal, antes de decidir escrever seu primeiro livro, já está trabalhando em sua obra. E muitas vezes nem sabe disso. Comigo não foi diferente.
Na escola, quando cursava a quinta série, fiz um exercício de redação e parece que ele alcançou algum sucesso, pois a professora resolveu ler a minha narrativa, justo a minha, para a classe inteira. Morrendo de vergonha, percebi que meus colegas apreciaram ter se tornado personagens daquela história que envolvia uma festa com luz negra e algumas descobertas adolescentes. Assim, durante um ano inteiro, continuei a narrativa, com as mesmas personagens, todas as semanas, a pedido dos amigos. Aqueles eram meus primeiros leitores e eu não tinha me dado conta. A esse acontecimento, somou-se outro.
Ainda no mesmo ano, com o dinheiro ralo da mesada, comprei um romance de mistério, numa banca de jornais. Ao chegar em casa, levei uma baita bronca dos meus pais por ter gasto dinheiro com uma coisa tão chata. Irritada, subi para o quarto e comecei a leitura; em poucos minutos, qualquer mágoa já tinha se dissipado. Ao terminar o livro, prometi a mim mesma que era isso o que eu queria fazer da vida: ler e escrever histórias. Mas esse dia, no qual me tornei uma autora publicada, demorou quase trinta anos para acontecer. Enquanto isso, prossegui vivendo e viver já era escrever.
Escritores, de modo geral, agem como psicólogos ou detetives. Observam os vizinhos, ouvem segredos (que não guardamos, é claro, pois somos péssimos nesse quesito), reparam nos detalhes, sobretudo nos gestos: um jeito peculiar de roer as unhas, de piscar os olhos, um tique. Um tique é fenomenal. Há também os objetos, as fotografias, os lugares por onde passamos e uma vontade incontrolável de ouvir conversas — em todo lugar, no metrô, no mercado, no elevador; as pessoas, elas detestariam saber.
Foi dessa forma que nasceu Casa de família. Um livro que comecei a escrever desde sempre, pois no caminho da escrita evocamos tudo o que nos pertence, seja emprestado ou até mesmo roubado.
Em termos de produção, Casa de família levou cerca de cinco anos para receber o ponto final. Comecei a esboçá-lo no verão de 2018, inspirada pela polarização política no Brasil e no mundo. Logo percebi que, para tratar desse tema, eu deveria começar num período anterior ao completo esgarçamento político no país. Mas qual? O impeachment de Dilma Rousseff? As jornadas de junho de 2013? A ditadura de 64? A chegada dos portugueses à América? A queda do Império Romano? A vida no Neolítico? Após ponderar, cheguei à conclusão de que um recorte que acompanhasse a minha trajetória de vida seria menos ambicioso e mais eficaz. Dessa forma, ocorreu-me que o período de redemocratização do país poderia gerar um arco narrativo consistente e, ao mesmo tempo, de bom tamanho para problematizar as questões políticas, econômicas e sociais que me incomodavam e, se estou certa, causavam (e ainda causam) desassossego a muita gente no Brasil.
Com o pano de fundo estabelecido, parti para o enredo. Desde jovem, eu queria contar a vida de algumas empregadas domésticas que conheci nas casas da vizinhança e a complexa luta de classes exposta nessa dimensão do trabalho. Personagens, é por aí que sempre começo um livro. Desse momento em diante, tudo foi invenção e memória, como Lygia Fagundes Telles gostava de dizer. Convém elucidar: a memória também é feita de muita pesquisa, busca em jornais, revistas e nos hyperlinks afora.
Em seguida, surge o cenário, o espaço: a casa de família que dá título ao romance. Isso porque compreendo que o núcleo familiar seja a base da sociedade e a partir dele a vida em comunidade se "organiza", assim como o romance.
Por último, vem a busca pelo narrador. Era preciso dar voz a essas empregadas e ao mesmo tempo mostrar o silêncio provocado pela doença numa família de classe média. Além disso, era importante ter uma narradora que costurasse a trama, isto é, uma personagem em formação, como a filha adolescente da família, que de algum modo poderia ser comparada com a nossa democracia, também em formação, muito frágil e à mercê de manipulações. Nesse ponto entra o antagonista, o irmão mais velho, alguém que se moldou pelas classes privilegiadas e tem como meta de vida tirar proveito do país. Sem dúvida, Toninho foi a personagem mais gostosa de construir, talvez porque ele escancare o Brasil, e aí houve uma pesquisa e uma luta tremenda para distinguir essa voz no meio de tantas, uma voz antagonista, que não poderia soar previsível, pois com Toninho aprendemos que a perversidade é surpreendente, além de cafona, claro.
Mais não posso dizer, é preciso ler o livro.
Com relação a metodologia e manias, não há nada além do computador, da cadeira, da vista para a copa das árvores no terceiro andar. E os livros. E um teto todo meu.