Por Emanuel França de Brito, Maurício Santana Dias e Pedro Falleiros Heise
Em 2021, ano do sétimo centenário de morte de Dante, publicamos nossa tradução coletiva do Inferno, primeira parte do poema Comédia, pela Companhia das Letras. Esta edição conta com uma introdução assinada por nós, além de três textos de poetas que falaram sobre Dante – Dante Milano, Pier Paolo Pasolini e Eugenio Montale –, um esquema gráfico do inferno e um índice onomástico, além de gravuras de Evandro Carlos Jardim. Passados três anos de sua publicação, a editora agora lança a versão econômica pelo selo Penguin.
Edição da Companhia das Letras, de 2021
Mesmo tendo recebido o prêmio Paulo Rónai de melhor tradução pela Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 2022, consideramos que o trabalho tradutório, assim como todo trabalho criativo, nunca é definitivo. Por isso, para a edição de 2024, fizemos uma releitura de nossa proposta de tradução. A partir de eventos públicos em que a apresentamos, assim como de cursos em que a discutimos, fomos retrabalhando-a em vários aspectos, desde métricos, sonoros e rítmicos, até morfológicos e sintáticos. Vamos aqui destacar alguns exemplos de variantes de tradução.
Já no primeiro canto do poema (Inferno, I vv. 100-102), decidimos trocar o tipo de cão de caça citado na profecia de Virgílio: em vez de “lebréu”, optamos por “galgo”, menos estranho ao leitor brasileiro, assim como o veltro o era ao leitor italiano na época de Dante.
Ainda no nível vocabular, fizemos uma alteração no verso 4 do canto XXXII, quando Dante medita sobre o estilo mais adequado para dizer em versos o que viu no fundo do inferno, logo na entrada do nono círculo. Na tradução de 2021, dissemos que o poeta “exprimiria o suco da visão” naquela passagem. No entanto, outra possível leitura é que o poeta queria espremer, fisicamente, o sumo daquilo que testemunhava. Preferimos então traduzir que ele “espremeria o suco da visão”, conferindo ao verso um sentido concreto e retirando o abstrato. Esse tipo de procedimento nos ocorreu ao lermos o ensaio de Óssip Mandelstam – agora finalmente disponível ao leitor de língua portuguesa nesta edição – na tradução de Rubens Figueiredo. Como pode-se ver abaixo:
Na edição de 2021:
Tivesse eu uma voz áspera e rouca,
mais condizente ao tenebroso vão
no qual todo penedo pesa e enroca,
exprimiria o suco da visão
mais completo; mas como ela não sai,
vou falando com certa apreensão;
Na edição de 2024:
Se eu tivesse uma voz áspera e rouca,
mais condizente ao tenebroso vão
no qual todo penedo pesa e enroca,
espremeria o suco da visão
mais completo; mas como ela não sai,
vou falando com certa apreensão;
(Inferno, XXXII vv. 1-6)
Em alguns casos, refizemos o verso buscando aproximá-lo da sintaxe e da cadência rítmica do verso italiano. É o que se vê no canto XI, v. 2, em que a segunda redação recupera o andamento do decassílabo dantesco.
Na edição de 2021:
feita em arco de pedras e rochedos
Na edição de 2024:
de pedras rotas, arcos e rochedos
(Inferno, XI v. 2)
Algo semelhante fizemos no início do canto XXIV, que agora se lê em uma sintaxe mais direta, especialmente no terceiro verso.
Na edição de 2021:
Naquela parte do ano inda criança
em que o sol sob Aquário os fios aquece
e a noite ao dia em meio já se avança,
Na edição de 2024:
Naquela parte do ano inda criança
em que o sol sob Aquário a coma aquece
e o dia sobre a noite já se avança,
(Inferno, XXIV vv. 1-3)
São detalhes que, isoladamente, podem parecer miudezas, mas, lidos na longa sequência do poema, alteram a percepção e ativam outras redes de sentido.
Edição bilingue da Penguin-Companhia, de 2024
O que importa ressaltar é que este é um processo ainda em curso: a edição de 2021 foi uma fotografia daquele momento, que teve toda uma pré-história de versões às quais o leitor não teve acesso. Nos três anos que separam uma edição da outra, em paralelo à tradução que estamos fazendo do Purgatório – e que esperamos entregar ainda em 2025 –, voltamos ao Inferno e, como era inevitável, o reescrevemos aqui e ali. Afinal, como disse Jorge Luis Borges a respeito das “versões homéricas”, “o conceito de texto definitivo corresponde apenas à religião ou ao cansaço”.