Diários do isolamento
Dia 60
Jarid Arraes
Duas da manhã, madrugada, novo dia ou dia anterior. Estou escutando o novo álbum da Lady Gaga, Chromatica, enquanto me imagino dançando. Luzes transpassando meu corpo, enxergando pessoas como seres feitos de gás. Ouvi a música “Sine From Above”, em que Gaga canta com Elton John, e senti um desespero estranho, algo que me moveria para chorar e me entregar ao clichê da dança escrita em texto. Por que a dança é uma metáfora tão clichê? Triste. Hoje, duas da manhã, sonhei que dançava no centro de uma aglomeração chorosa e feliz. As cicatrizes piscando. Todos nós.
Passei as últimas semanas vendo o que as pessoas estão falando sobre o mundo pós-pandemia. Fiquei curiosa para saber o que as pessoas previam ou sonhavam. Mas quanto mais eu via, mais era puxada para um profundo que não consigo medir.
O mundo pós-pandemia aprendeu a lição, abraços na rua, elas choram de felicidade, estranhos se beijam, as árvores estão mais verdes, e o céu, e os pássaros. Como a dança, metáforas e imagens que se repetiam num grande e horrível clichê de ingenuidade. Fantasia. Um monte de frases em estado de negação. Não, eu não imagino que abraços entre estranhos estejam na realidade dos próximos meses. Algumas pessoas disseram que daqui a alguns meses, que em agosto, que no final do ano. Elas sonham com moralidade, com igualdade, respeito, sonham com um mundo onde não há racismo, porque todos serão finalmente iguais, e sonham com golfinhos. E eu, quase morrendo afogada soterrada baleada por tanta fantasia, fiquei cada vez pior.
Já escrevi nesse diário sobre como me senti triste ou com raiva, disse que não consigo mais planejar o futuro. Escrevi tudo isso estripando minhas angústias no ritmo das notícias. Mas ainda não tinha me sentido tão derrotada quanto agora, depois de ler e ouvir e saber de tantas pessoas falando sobre o Brasil pós-corona.
O que você imagina para a realidade de agosto, dezembro, 2022?
Elton John canta uma parte em que diz, quando eu era jovem eu me sentia imortal. Lady Gaga canta uma parte em que diz, eu olhava para o céu com meus olhos cheios de lágrimas, mas não via nada lá. E a música explode empurrando qualquer corpo para a dança. Eles ouviram um chamado, um som, um big bang, uma onda, finalmente. Eles falam sobre corações curados. Dá vontade de acreditar nessa pista de dança saída da terapia, onde todo mundo compreende motivos e significados. É como um banho triste, pura melancolia resignada escorrendo pelo corpo. Nós só podemos dançar em casa. Use um cabo de vassoura para ligar e desligar a luz, compre luzes coloridas pela internet, coloque a música bem alto e seja multado pelo condomínio. Tudo para ouvir algo escutar algo, estamos todos esperando o som da permissão para sair?
Algumas pessoas descrevem o dia em que um decreto permitirá a saída. A notícia no jornal que, efusiva, comunicará o fim do isolamento. Eu penso, é verdade que essas pessoas acreditam nisso? São tentativas de viver com o material? Uma forma de amansar o descontrole?
Que selvagem, animalesco, instintivo. Mentir para si mesmo é movimento de sobrevivência. Mas depois te espalha em pedaços irreconhecíveis. Você pode viver uma vida inteira tentando encontrar as partes que pularam pra bem longe.
Talvez o meu diário, aqui nesse projeto “Diários do isolamento”, seja o menos informativo. Não é útil para que as pessoas compreendam os fatos. Eu não escrevo o que está acontecendo na política, nas caridades, nas salas de reunião, nem o que sai da boca do repórter. Eu acho que pego toda a massa das reações, toda a matéria gosmenta, e escrevo o que talvez eu, você ou sua mãe. Talvez nós. Sem pretender ser nós. Apenas eu tentando modelar um barro instável. É pura sujeira.
Chromatica é um álbum de música para que você dance. Mas você precisa dançar enquanto enfrenta as letras. Lady Gaga fala sobre sentar dentro de uma cova que ela mesma cavou e, olha só, será que ela vai se comportar naquele dia? Você vai conseguir se comportar mais um dia, só mais um dia?
Talvez eu e você, nós, devamos escrever e falar sobre pássaros, céu, árvores, abraços coletivos, avós que sobrevivem, vizinhos que entregam bolos e uma aglomeração colorida onde eu e você, nós, possamos dançar tudo que nos angustiou até aqui.
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Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.