Diários do isolamento
Dia 68
Jarid Arraes
Tenho um poema que diz que precisamos de trinta dias de prática até que um novo hábito se torne rotina. Estava lavando o cabelo enquanto pensava nele. E nos hábitos que se tornaram coisa de todo dia durante meu isolamento. Comida descendo como rolha para as artérias, olhos emoldurados pela pele escura que não dorme, escrever a certeza do fim próximo. Um fim que não precisa de ninguém para que seja anunciado. E então me lembrei de outro poema que escrevi, um que fala sobre a experiência do fim de tudo.
4
conversas
cotidianas
são
assombradas
pelas trombetas
dos anjos
e os cavaleiros
se apressam
manando pragas
são nossas
doenças
gripes inflamações
células podres
infecções
são as enfermidades
psiquiátricas
propositalmente
inseminadas
pelas espadas dos
anjos e os cascos
em ferro
das montarias
bestiais
e cada vez que o céu
se abre
já não esperamos sol
chuva tempestade
aguardamos a ira
de deus
e o mundo gemendo
em fogo
ardendo nossas feridas
mas
o mundo está acabando
desde o início
o fim nasceu das águas
ele vem
manso
previsto
esperamos o prodígio
de tantas cabeças
e mar de sangue no entanto
o mundo acabará
em finitude maravilhada
teremos que esquecer
as fábulas
acostumarmo-nos
ao tangível
para a maioria de nós
não há condenação
mais grave
do que a consciência
dissipada
para outros
saem os cavaleiros
e descansam
os cavalos
Mais de 50 mil mortos. De acordo com uma notícia que li, estão estudando os dados e o número pode ser, na verdade, bem maior do que esse. 50 mil já me deixa muito impactada. Eu já estava impactada no primeiro dia, quando o primeiro caso foi noticiado, e eu olhei para o céu sem esperar sol, chuva ou tempestade. Não precisava esperar uma lógica de destruição, meu corpo já sabia que dali viria um tempo ruim. E tempo ruim, para mim, que sou do sertão do Ceará, não é tempo de trovão, raio, relâmpago e água descendo a rua como correnteza. Tempo ruim é esse forno onde estamos assando. A carne ficando mole e se descolando dos ossos. Quente, quente, quente, e marasmo, mormaço. Um nota só de fim acontecendo. Eu soube que muitos fins nasciam. Eu sabia que chegaríamos a 50 mil mortes, ou mais!, e as coisas estariam assim.
Como enxergar diferente? O fim vem previsto. Esteve lá o seu rosto. Qualquer um conseguiria ver e ligar os traços. É fim dia após dia para muita gente que morre, para quem ama a gente que morre, para a gente que se dissipa entre paredes. Estamos todos virando farelo.
Minha amiga médica oncopediatra me contou que teve um plantão horrível. Muitas crianças na UTI, várias na internação da enfermaria. Estão com seus respiradores. E aí os pais começaram a levar crianças com emergências como dor de cabeça. Pelo que me disse, a noção de isolamento já se perde, é como se não existisse mais o sentimento que nos leva ao isolamento. Uma dor de cabeça não é antes medicada com remédio para dor de cabeça, ela é uma justificativa para a exposição ao coronavírus. Minha amiga médica disse que falou isso aos pais que apareceram no hospital. Seus filhos estão sendo expostos ao coronavírus. Mas uma dor de cabeça ganha de uma festa de aniversário. Tanto eu quanto minha amiga médica sabemos de muitas festas infantis. Aqui do andar muito alto onde fica meu apartamento, escuto os aniversários sendo comemorados. Mais um ano de vida que pode ser o ano do fim. Ele vem manso, previsto. Num instante você está comendo o bolo, depois é cavalaria abaixo.
Do dia 11 de março até hoje, tive alguns trinta dias para que os hábitos novos e angustiados se tornassem regra. Meu corpo se habituou a dormir mal, muito, e também pouco. Meu corpo se habituou ao açúcar em excesso e passou a manifestar desgosto com formigamentos nas pernas e braços, as vezes dores, as vezes a conversa direta com meu cérebro, que me diz, como rotina, que qualquer hora dessas chega a trombose, a amputação, o coração diz que chega, a cabeça diz há algumas semanas. Já chega, eu cansei, eu não aguento mais, eu realmente acho que não consigo. Alguém diz que encontrou os amigos porque precisava muito, não fica com raiva de mim. E eu digo que também preciso muito encontrar meus amigos, então eu não compreendo, nem desculpo, você morreu pra mim. Uma troca terrível de mortes.
O pior não é ficar meses em casa e nem permitir que todos os dias sejam vividos do jeito errado. Existe o jeito errado. O pior é experimentar tudo isso, engolir tudo isso, ter que se habituar a tudo isso, enquanto milhares pensam que estão vivendo um certo tipo de normalidade. Ou a própria normalidade. É aí que se torna insuportável. E não adianta me falar que eu não deveria me sentir imbecil, já que estou me protegendo. Não adianta porque, cada vez mais, essa autoproteção me parece um autoengano.
Pode ser que o fim esteja bem ali do lado de fora, em pé diante da minha porta, esperando a próxima caixa que sobe o elevador para se grudar a ela.
Manso. Previsto.
Agora, sabendo das 50 mil mortes, ou mais!, eu me pergunto quanto de esforço vou ter que botar na conta para conseguir mudar meu modo de viver no isolamento. Porque não aguento mais. Porque talvez não saia nem daqui a mais três meses. E essas paredes precisam conversar comigo, precisam me abrigar, precisam ser as paredes que seguram meu cérebro. Não quero mais sentir as pernas formigando, o braço esquerdo doendo, as pálpebras trêmulas, a coluna caindo osso por osso, pingando no chão que não tem coragem de ser limpo.
Talvez eu aguente. Quantos dias são necessários para aguentar? Quantos dias são necessários para que eu faça questão de aguentar?
alta ajuda
dizem que são necessários
trinta dias
para que um novo hábito
se torne rotina
dizem que o problema
é a gordura que o
açúcar refinado na
verdade que todo
açúcar que as frutas
também
tudo faz mal
e dizem que yoga
e pilates
exposições gatos cães
pássaros livres e
nadar com os golfinhos
não
a natureza se desequilibra
assim como bambeamos
movidos a ansiolíticos
e cafeína
até mesmo os que dizem
que a meditação
os parques as longas
caminhadas na praia
a água de coco o óleo
de macadâmias
as escovas
elétricas e o chás
feitos das ervas
tiradas do chão fazem
bem
até mesmo os que dizem
que todas as religiões
que a tolerância o
ecumenismo as missas
de sétimo dia as velas
os filmes nacionais
os editais o apoio
do governo a importância
dos movimentos sociais
até mesmo
os que dizem que a
indústria o consumo
as leis a punição
até os que sentem
pena
até eles dizem
que trinta dias passam
mas não habituam
a vida
em quem de nada
faz questão
***
Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.