Diários do isolamento
Dia 70
Jessé Andarilho
Vou aproveitar esse espaço aqui para falar sobre um assunto bem interessante. Vou falar do meu jeito. Alguns não vão gostar, mas isso faz parte da vida.
Estou numa luta há mais de um ano para abrir uma biblioteca comunitária em Antares, lugar onde praticamente nasci e fui criado.
Aluguei uma casa na favela e comecei juntando meus livros e pegando alguns com amigos mais próximos.
Até que descobri que o posto policial de Antares foi desativado, e o espaço ficou vago.
Conversei com o presidente da associação dos moradores e fomos até o batalhão da PM que era responsável pelo antigo DPO e informamos que nós íamos ocupar o espaço para transformar em uma biblioteca comunitária.
Até aí tudo bem. Fizemos algumas reformas no espaço e começamos a pedir ajuda para todos.
Foi aí que a coisa começou a ficar estranha.
Não sei o que passa na cabeça das pessoas quando elas vão fazer doações para bibliotecas comunitárias.
Vocês acreditam que a gente começou a receber cadernos usados, classificados, guia de turismo dos anos 90 e um monte de brinquedos quebrados?
Os livros didáticos antigos também vieram nesse pacote. Não tenho nada contra esse material, mas quero uma biblioteca comunitária linda, com livros bons. Sabe aqueles livros que você nem gosta de emprestar de tão bom que ele é pra você? É desse livro que estou falando. Como incentivar a leitura em um lugar com o pior IDH do estado, se as poucas prateleiras que temos estão ocupadas com os cadernos do quinto ano dos seus filhos?
Conversei com pessoas que trabalham em bibliotecas comunitárias de vários lugares e elas me disseram que isso é muito comum. Teve uma que relatou que fez uma campanha para arrecadar roupas e em uma das doações apareceu uma fralda cagada. É isso mesmo que você leu. A fralda estava cagada.
Gente, não vamos jogar bosta no projeto de vida das pessoas. Não use as bibliotecas comunitárias como uma oportunidade de desocupar ou se livrar de um monte de ninharia. Se for pra mandar um monte de CDs? Mande o aparelho junto. Quer mandar vinil? Mande uma vitrola junto. Quer mandar bosta? Venha junto.
Estamos tomando todas as medidas para em breve podermos inaugurar nossa biblioteca comunitária. Já aprendemos com uma amiga que trabalha em uma biblioteca em Londres como proceder com os livros que retornam. Vai rolar uma quarentena para eles.
Por enquanto só vamos emprestar, ninguém vai ficar no espaço lendo. A ideia é incentivar as pessoas a ficarem em suas casas lendo livros de qualidade.
Esse é o papo. Sei que todo papel que tem alguma coisa escrita é muito importante, mas não temos prateleiras para todos, por isso queremos usar as nossas poucas prateleiras com livros de qualidade. Se você não entendeu o recado, volte duas casas.
#BibliotecaMarginow
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Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.