Esta semana, um comunicado da Receita Federal voltou a insistir na equivocada e elitista tese de que o livro é um produto para ricos no Brasil. O órgão federal repete a fala obscurantista feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, em meados do ano passado. Em resposta a Guedes, o editor e fundador da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, escreveu um texto que saiu na edição da Folha de S.Paulo de 11 de agosto de 2020 – e que, pela importância do tema, reproduzimos novamente.
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Recentemente, o ministro Paulo Guedes veio a público defender sua reforma tributária e a taxação dos livros. Seu argumento é mais ou menos o seguinte: o livro é um produto de elite, logo, quem compra pode pagar um preço maior. O tributarista Bernard Appy fez coro ao ministro. Como contrapartida, aos milhares de leitores que serão prejudicados, Guedes ofereceu: “o governo dará livros de graça para os pobres”. É importante analisar alguns aspectos da declaração e as visões de mundo, de cultura e de educação que estão por trás dela.
Em primeiro lugar, choca imaginar o que o ministro e o tributarista imaginam ser o anseio legítimo da população pobre. Estaríamos vivendo uma nova versão da história romana do pão e circo? Os pobres têm direito inalienável de acesso à cultura, ou devem aguardar pelo paternalismo eterno de um governo que escolherá por eles?
Um pouco de história ajuda. O livro no Brasil foi muito beneficiado pelas políticas distributivistas dos governos FHC e Lula. Ou melhor, as classes menos favorecidas, especificamente a classe C, passaram a comprar livros e a atuar ativamente no mercado da cultura e da educação. Cabe perguntar: essa classe se enquadraria entre os ricos que devem pagar mais? O jovem das classes desfavorecidas pela enorme desigualdade brasileira, que depois de anos conseguiu entrar numa universidade, faz parte dos ricos que devem pagar mais? Alguém pode dizer com que dinheiro eles poderiam arcar com esse aumento? Na última Bienal do Livro no Rio de Janeiro, da qual participaram 600 mil pessoas, grande parte dos frequentadores eram jovens de classe C. Serão eles os ricos de Guedes e Appy? Na Flupp (festa literária das periferias) os dados são ainda mais eloquentes: do publico total do evento 97% se declaram leitores frequentes de livros, 51% tem entre 10 e 29 anos, 72% são de não brancos e 68% pertencem as classes C,D e E!
Diante do crescimento da demanda de livros por uma nova classe, que passou a participar do mercado livreiro pela primeira vez, os editores mantiveram preços estáveis, mesmo num período de inflação considerável, como nos anos Dilma/Temer.
Com os preços relativamente estáveis, os novos leitores de classes menos favorecidas permaneceram no jogo, e o grande perdedor foi o livreiro, que tinha seus aluguéis e salários aumentados e o faturamento diminuído. Esse é um exemplo da fragilidade da cadeia editorial/livreira, que agora enfrentará um inimigo diferente da inflação e quebrará em dominó com a elitização de seu produto e mais: com taxas que não cabem em seu orçamento. Para sobreviver, o livreiro não poderá aumentar preços, que são determinados pelo editor, mas terá de diminuir descontos para o consumidor final. Novamente o resultado esperado será uma elite leitora ainda menor. A editora pequena, que vende pouco e está fora do jogo dos best-sellers, provavelmente não aguentará ver suas tiragens ainda mais diminuídas. Terá como sobreviver às tantas crises desses últimos três anos? Os importantíssimos livros de baixa tiragem serão ainda mais restritos e poderão não encontrar editor.
O aumento do preço do livro tornará um bem parcialmente elitizado em mais elitizado ainda. O raciocínio que estamos examinando é o seguinte: se os pobres não leem, os ricos que paguem mais. Mas o que não entra no vosso cálculo, senhor ministro e senhor tributarista, é que os pobres querem ler. A empregada doméstica que gostaria de ter ido à Disney e infelizmente não ganha o suficiente para ir, quer ler. E todos que querem têm direito de escolher o que ler. Que governo é esse e que ministérios da Educação e da Cultura temos, para que possamos delegar totalmente a seleção dos livros a esses senhores e senhoras? Que liberalismo é esse que defende o dirigismo estatal na escolha do que o pobre deve ou não deve ler?
A distribuição gratuita de livros escolares nada tem a ver com facilitar o acesso a bens culturais, cuja cadeia de produção ainda é frágil. Continua sendo fundamental fornecer livros gratuitamente a bibliotecas escolares ou a leitores pobres, mas isso só cobre uma parte da equação. Na visão de mundo vigente nesse projeto, o rico pode ler, mas o pobre só lerá o que o governo lhe fornecer. Quem justifica a nova taxação com essa falácia sabe que sem leitura ninguém ascende socialmente, ou será que não se preocupa com isso?
Que visão têm esses senhores da pobreza, do papel dos bens culturais e da educação para o povo? Será que o ministro e o tributarista sabem diferenciar livros básicos de literatura escolar da capacidade de acesso ao conhecimento voluntário e geral? Que garantias oferece esse governo com relação à verdadeiras políticas de distribuição de renda — políticas que precisam de antemão enxergar os pobres como cidadãos com vontade própria, intelectual e criativa, com discernimento de escolher cultura e educação para a sua cesta básica.
No início da pandemia, o prefeito de Montevidéu decidiu incluir livros na cesta básica, dando um sinal de que a cultura faz parte das necessidades primordiais da população. Determinar que cultura é da elite por natureza, a ponto de decidir elitizá-la ainda mais, implica uma visão de mundo que não vislumbra que os pobres venham a ter meios próprios de ascensão na pirâmide social.
Ninguém pede isenção de impostos para lucrar mais, mas sim para continuar na luta por mais leitores, passo essencial para termos um país melhor e mais plural.
O ministro e o tributarista, ao se preocuparem apenas com o orçamento catastroficamente administrado pelo governo atual, buscam uma taxação inconstitucional dos livros, consagrada na longa tradição jurídica brasileira, e que só destruirá o canal livreiro e alijará milhares de futuros leitores que querem ler para discutir, de igual para igual, os preconceitos a eles atribuídos, colocando em xeque medidas injustas como essa.
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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.