Comecei a seguir Warren Ellis aí por volta de 1996. Na internet-mato daqueles tempos, Ellis foi um dos primeiros caras dos quadrinhos que montou site pessoal e cultivou seguidores. Escrevia e ainda escreve de uma cidadezinha costeira da Inglaterra, Southend-on-Sea, se dedicava à curadoria de links bizarros e cultuava o tabagismo. Seu site era o Smoke Damage.
De escritor de segundo escalão esforçado, Ellis chegou a Transmetropolitan, Authority, Planetary, brigou com editora grande por causa de censura, se arriscou como romancista, virou colunista da Wired, promoveu quadrinho digital como o futuro, seus gibis viraram filmes, ele começou a escrever roteiros. Vieram seus fóruns, suas newsletters, seus blogs, Twitter, Instagram. Ellis dominava cada plataforma, pois, quando ainda não existiam, ele já fazia o que elas nasceram para fazer.
Fui devoto da marca Warren Ellis. Do cara ligado em tecnologia, política, música de vanguarda, cinema alternativo, literatura emergente, quadrinho obscuro. Que leu tudo, viu tudo, ouviu tudo e desprezava 99% de tudo. Que, quando ia falar do 1%, era inspirador no talento de encaixar uma palavrinha na outra. Seus posts e colunas sobre linguagem de HQ e sobre mercado circularam. Viraram livros, viraram palestras, vivem nas aspas. Há um documentário sobre Ellis.
A marca Ellis também era do misantropo que, antes de ir às raras convenções, avisava que não apertaria sua mão porque não queria ficar doente. (À frente de seu tempo, pelos olhos de 2020.) Acho que tive um único contato direto com o homem, por e-mail. Pedi uma entrevista para um site de quadrinhos e ele respondeu que não, pois “não posso perder tempo pregando pra quem já é convertido, espero que entenda”. Fecha com a marca.
Em junho último, várias mulheres acusaram Ellis de abuso. As histórias que elas contam são de comportamento serial: ele amigava-se com uma artista jovem que quisesse entrar no mercado de HQ ou audiovisual, oferecia-se para ajudar e, papo vem, papo vai, pedia favores sexuais. Assim que ela dizia não, perdia os favores dele e virava vítima de gaslighting: Ellis queimava a pessoa no mercado. Não foi só uma. Mais de sessenta destas mulheres assinam um website, SoManyOfUs.com, com histórias parecidas de abuso emocional e manipulação por parte de Ellis, num período de vinte anos.
Dias depois das acusações, Ellis publicou uma nota de esclarecimento e encerrou sua newsletter semanal. Tinha 23 mil assinantes. No blog e redes sociais, as últimas postagens são de junho. É um silêncio que eu não ouvia desde 1996.
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Pois o homem branco cis do século vinte com dois vírgula três filhos que escreve este texto ficou indignado. Traído. E veio reclamar que não tem e provavelmente não terá mais o que ler de outro homem branco. Reclamar para ele, no caso.
Vi gente dizendo que vai se livrar de sua coleção de gibis do Ellis, ou que não comprará mais nada com o nome dele. Quanto à segunda parte, é fácil: provavelmente vai sair pouquíssima coisa com o nome de Ellis daqui em diante.
Quanto à primeira parte, eu costumava ter uma resposta pronta: separem criador e criatura. Filhos não carregam pecados dos pais. Conseguia achar Transmetropolitan legal na estante e afastar a ideia de que quem escreveu aquilo não é uma pessoa legal. Também pensava tranquilamente que as vítimas dele não sofreriam mais ou menos porque leio The Batman’s Grave.
Eu também considerava o “apesar de”. Que poderia continuar resenhando, citando, comentando Planetary, incrível que é, apesar do Warren Ellis.
Mas não sei mais nada.
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Em 2016, outro escritor de HQs, Gerard Jones, foi preso por posse de pornografia infantil. Jones já estava afastado do mercado há tempos, mas uma das editoras em que ele escrevia, a DC Comics, retirou os gibis antigos do escritor de plataformas digitais.
Há questões de royalties no meio: um percentual das vendas desse material, mesmo que irrisório, vai para o autor, e não se queria criar oportunidade de dar dinheiro a criminoso. Jones está na cadeia e deve ficar até 2024.
Porém, como vários apontaram, Jones não é o único que assina estes gibis. Há desenhistas, arte-finalistas, coloristas, editores que também ficam privados não só de royalties, mas da circulação do trabalho. Warren Ellis, do mesmo modo, não produziu nenhuma de suas HQs sozinho.
Não é só nos quadrinhos. Sem entrar no mérito de condenações ou acusações nem do que você pensa a respeito das condenações e acusações a cada um, Woody Allen, Louis C.K., John Kricfalusi e Bryan Singer não fizeram nenhum filme, seriado nem desenho animado sozinhos.
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Porém, Woody Allen é o motivo para assistir (ou para não assistir) praticamente todos os filmes do Woody Allen. Louis C.K. era o Louie. E Warren Ellis era a marca pela qual se comprava a maioria de seus gibis, independente de desenhistas, coloristas, editores etc. etc. etc.
Dá para dissociar o culto às obras incríveis do culto aos homens horríveis? Difícil. Expor, falar, promover obras incríveis de homens horríveis ainda é cultuar homens horríveis. Mais do que tudo, é dizer para as gerações à frente que arte se justifica mesmo quando (apesar de) o artista deixa vítimas pelo caminho.
O homem branco cis do século vinte com dois vírgula três filhos que escreve está indignado. Com o Ellis, com Louis C.K., com Woody Allen. Na minha ilusão, eles tinham o compromisso de continuar traficando entretenimento de qualidade. Queria que eles fossem melhores do que eu não só criativamente, mas moralmente. Queria recomendar aos amigos, queria citar, queria revisitar. Ficou difícil. Não dá para falar de Louie apesar do Louis, nem de Batman’s Grave apesar do Ellis.
De um lado, ainda quero achar que que as merdas do autor não mancham as obras do autor. Por outro, chamar de incrível a obra que veio da pessoa horrível também é massagear esse incrível na pessoa horrível.
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Isto não é uma conclusão, e sim uma constatação sobre o terreno lamacento dos homens horríveis. Uma indignação, mais que tudo.
Por enquanto, tenho uma meia-solução. Um amigo que gostava muito de ouvir Oasis detestava as figuras dos irmãos Gallagher. Achava os dois babacas. A solução a que ele chegou foi só ouvir Oasis via pirataria, de modo que nenhum centavo dele chegasse aos Gallagher. E, para ele, acabava nos ouvidos – não precisava ficar dizendo por aí que era fã de Oasis.
Por enquanto, não vou ficar dizendo por aí que ainda tiro Planetary da estante. Indignado, ainda indeciso.
[Muitos agradecimentos a dois leitores beta que discutiram estas ideias comigo e fizeram eu rever boa parte do texto: Rodolfo S Filho e Dandara Palankof.]
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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho e Minha coisa favorita é monstro. http://ericoassis.com.br/