Diários do isolamento #89: Jarid Arraes

22/08/2020

Diários do isolamento

Dia 89

Jarid Arraes

 

O elevador novo tem luzes azuis e números grandes. Mostra os andares subindo e descendo. Ontem, ele me mostrou o número da cobertura do prédio no mesmo instante em que apertei o quadrado pela primeira vez desde 11 de março.

Eu não sabia se era caso de ida ou vinda, mas esperei em pé, distante da porta. Deixava para trás o piso frio da cozinha. E a porta branca. E o móvel de madeira que segura cactos mentirosos, porque não tenho relacionamento íntimo com plantas. Esperei em pé, imaginado se a vizinha sairia e levaria outro susto pra dentro de casa depois de ver minha máscara N95 azul.

O susto foi meu.

Na verdade, não um susto. Uma decepção e uma raiva. Sentimentos encarando o homem que vinha do andar 17. Ele usando roupa de quem vai comprar pão, eu de jaqueta, tênis e óculos embaçando. Ele sem pano cobrindo o nariz, sem trapo pendurado no queixo, sem um fiapo sequer nas mãos. Olhou pra mim metade surpreso, metade sem graça. Minha máscara azul daquelas pra valer, daquelas de capa de revista. Eu disse, melhor eu esperar. Ele quase saiu do elevador para que eu entrasse. Eu dei mais dois passos para trás. Disse, tudo bem, pode ir, eu espero. Nos últimos meses, li centenas de textos que falavam sobre a comunicação dos olhos, mas tenho certeza que os meus não disseram nada. Nem a simpatia, religião da qual sou praticante.

Esperei, desci sozinha. Reparei que o aviso de que é obrigatório o uso de máscara nas áreas comuns do prédio não estava colado no elevador novo. Estava no social, que agora ganha a vez de ser reformado. Uma raiva e uma ansiedade me acompanharam até o táxi.

Moro perto de um hospital, passei pouco tempo com o motorista de sobrenome japonês. Abri a janela até o talo. Como é ser passageira de táxi? Agora o certo é abrir a janela, né? Eu sempre preferi a janela aberta, não gosto da mudança de temperatura extrema – e breve – que é coisa de ar-condicionao.

Eu mal conseguia aguentar a dor de ficar sentada. Desde 11 de março, nada foi capaz de me fazer sair do apartamento. Nem chantagem emocional, nem problemas da vida, nem mesmo um tratamento contra câncer ainda pendente. O que me obrigou a sair foi a bagaceira da minha coluna. De repente não consegui mais sentar, de repente dores e espasmos totalmente novos. Estive – e estou – deitada na cama desde meu último diário. Trabalhando o mínimo, que é o máximo possível, me automedicando, dormindo durante todo o dia, roendo as beiradas da depressão durante a madrugada. Eu achei que a coluna melhoraria depois de todos os remédios terminados em cox, em lax, em lex. Nada melhorou e eu fui expulsa do isolamento total pelos ossos complicados do meu corpo.

Quando cheguei ao hospital, me vi desorientada. Esqueci como caminhar em linha reta, rápida e intencional. Meu corpo era vontade de viver e de morrer. O segurança do hospital apontou o termômetro para minha testa. 36 graus. Vontade de viver. Falei com a recepcionista e descobri que estava no lado errado do hospital. Vontade de morrer. Uma mulher conferiu de novo minha temperatura. Entreguei meu RG para o rapaz que tirou uma foto da minha cara coberta. E ainda com as lentes embaçadas, hein, fez piada. Vontade de morrer.

Acho que estava na nova área da ortopedia. Apenas um médico atendia e não era o que escolhi. Tenho o hábito de pesquisar os médicos no Facebook e escolho quem não deixa público o monstro interior. Eu tinha escolhido um médico jovem. No seu perfil da rede social, vi uma entrevista em que era descrito como cirurgião, ortopedista e negro. Achei estranho que “negro” estivesse naquela sequência de palavras. Pensei em quantas vezes isso acontece no mundo da Literatura. Cheguei ao hospital esperando por ele. Quem me atenderia seria o outro que rejeitei na hora de agendar a consulta. Quem me indicou o consultório foi uma funcionária negra que usava máscara e escudo facial. Vontade de viver.

O lugar estava vazio de um jeito que eu nunca tinha visto. Esperei em pé entre a fila de poltronas e a porta do consultório. Como se cada vez que eu não encostasse em algo pudesse apagar outra vez em que encostei. E quando entrei, não teve aperto de mãos. Ele não tentou, nem eu. Expliquei bem rápido. Ele me examinou bem rápido. Não tem mesmo muito o que dizer antes de voltar com o resultado do exame. Saí com o papel numa mão e o celular na outra. Do lado de fora, a quantidade de pessoas que sempre vi por ali. Outro táxi, a janela aberta até o talo, não lembro o sobrenome do motorista.

Errei o andar de casa. Parei um número abaixo. Que vontade de morrer.

Mas não deu pra pensar nessa morte. Pensei em outra enquanto tirava o tênis, deixava os documentos e o celular na pia da cozinha pra que meu namorado limpasse tudo, coloquei as roupas numa sacola, lavei o cabelo pela quinta vez na semana.

Depois tudo virou será que peguei nessa maçaneta com a mão suja? E a porta do box? Os interruptores. Meu piercing.

Hoje uma enfermeira veio coletar sete tubos de sangue em domicílio. Estava toda de branco, vestida com muitas camadas de proteção. Teve que colocar as coisas sobre a mesa, tive que pegar a caneta para assinar meu nome, tive que entregar meu RG outra vez. No momento em que ela saía, ouvi a vizinha sair também. Deve ter tomado outro susto. Aquela imagem de mulher alta e empacotada que parecia filme de epidemia.

Eu ri, né.

Lavei o cabelo pela sexta vez.

Semana que vem vou saber como anda o câncer, como andam meus ossos da “lombo-sacra”, como anda minha vontade de viver.

Desde 11 de março que insisto nela.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

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