90 anos de Ferreira Gullar

10/09/2020

Por Maria Amélia Mello, editora e amiga de Ferreira Gullar. Texto publicado na íntegra em 2017 no Jornal Folha de S.Paulo.

 

José de Ribamar e Ferreira Gullar se entenderam bem ao longo de 86 anos e, apesar de eventuais desencontros, tinham a nítida convicção de dividir seus espaços na vida e na criação. Jornalista, locutor, crítico de arte, contista, biógrafo, tradutor, ensaísta, cronista, dramaturgo, autor de livros infantis, artista plástico. Sua obra foi traduzida para várias línguas: inglês, espanhol, holandês, francês, alemão, italiano, sueco. Recebeu muitos prêmios e destacou-se entre os melhores. Ele foi tudo isso e muito mais. Para mim, foi o mais plural e singullar amigo que tive. Não se parecia mesmo com ninguém, aquele homem magro, estatura mediana, pesando em torno de 50 quilos, cabelos lisos, dedos longos e finos, passo apressado, decidido até o fim. Aprendi a gostar dos dois.

Gullar andava por Copacabana, onde morou por muito tempo, num hoje conhecido prédio de número 49, ia ao supermercado, pagava contas, carregava suas próprias sacolas. Passeava a beira-mar. Acordava por volta das seis, organizava a refeição matinal, cumpria as obrigações cotidianas, mas estava sempre refletindo, atento ao que o cercava. Era um entre tantos, mas era ele, com a sua singullaridade. Mesmo sem saber, ou querer, deixava uma presença por onde passava. As pessoas olhavam para trás, para vê-lo novamente, o acompanhavam com os olhos, paravam para cumprimentá-lo, acenavam na suposta intimidade da vizinhança. Não passava incógnito e essa demonstração explícita – por que não, invasiva? – não o incomodava. Sorria, balançava a cabeça, distraía-se. Em um de seus poemas, expressa: “apenas um homem comum”. Lá vai o poeta.

Um dia, percorrendo as calçadas incertas do bairro, deu de cara com um morador de rua, chutando freneticamente um carro estropiado e abandonado, na esquina de sua casa. Ao vê-lo, o rapaz estancou de repente os movimentos repetidos, afrouxou a raiva e encarou aquele homem indefeso, ali na sua frente. O poeta parou para entender o que acontecia e, acuado, já se imaginou apanhando, sem a menor possibilidade de fuga. Para surpresa, o prenúncio da violência se dissolveu no gesto do agressor, que de braços levantados, gritava exaltado: "Ferreira Gullar, Ferreira Gullar, tão famoso e eu não sei quem é".

Quando perguntado se era o poeta Ferreira Gullar, costumava responder, com ironia, mas deixando escapar uma verdade camuflada: "Às vezes". É isso mesmo, não se pode ser poeta 24 horas por dia, em permanente ebulição e delírio. Quem aguentaria? Mas, com certeza, experimentar, dia e noite, estado de criação latente, percorria aquele corpo frágil.

Fui sua editora por muitos anos e nosso diálogo profissional era integrado. Uma sugestão, uma ideia, um projeto era bem recebido. Sim ou não, faço ou não faço, a resposta tinha rumo certo. Algumas vezes, na ansiedade de ter, pronto, o livro inédito, eu não resistia e perguntava, assim entre um feixe de palavras descompromissadas. A resposta chegava direta: “O livro só fica pronto, quando está pronto”. Era a nossa senha para não mais indagar. Em uma ocasião, dando uma entrevista a um jornal de São Paulo, o repórter quis saber do livro em andamento. No laço, fazendo graça e referência a mim, sem, contudo, me citar, dispara um “nem fala nisso, senão minha editora vai logo me cobrar”.

Num setembro distante – em 1999 – partimos em caravana de amigos e jornalistas para o Maranhão, a única viagem de avião que fizemos juntos. Não é segredo para ninguém que Gullar não gostava de voar. Tinha medo, sejamos francos. Em São Luís, fomos guiados, por ele, a percorrer as ruas, espreitar seu passado mais remoto, num passeio único pelas memórias do José de Ribamar, que lá viveu por vinte anos, e mais, pelo senso poético de Ferreira Gullar, que deu – e dela extraiu – poesia aos cantos da cidade, seus becos, passagens. Pensei comigo mesma: era como se ele escrevesse, em voz alta, as muitas vozes do Poema sujo, matriz e raiz de sua existência, sua infância, seus pais e irmãos. A sua fala estava impregnada de poesia e lembranças. Foi uma sorte andar por aqueles lugares e ver revelado um mistério que só um (ex-) morador sensível faz vir à tona. Na minha imaginação, surgia o menino que corria solto pelas ruas de São Luís dos anos 30, que partia de trem levado pelo pai e não pude deixar de cantar baixinho “lá vai o trem com o menino/lá vai a vida a rodar/lá vai ciranda e destino/cidade e noite a girar /lá vai o trem sem destino/pro dia novo encontrar...” Numa manhã, no restaurante do hotel, tomamos, sozinhos, café, que a foto me faz recordar. Conversamos e rimos muito. Estava um céu luminoso, de claridade típica de São Luís, em vertigem, aquela luz impressa, incontáveis vezes, nas páginas de seus livros. Naquele setembro, há alguns anos, Gullar estava contente, recebendo as homenagens do lugar onde nascera, inaugurando uma avenida com seu nome, colhendo o que frutificou em poesias.

Ano após ano, comemorávamos seu aniversário e ele gostava do carinho, da atenção dos amigos. Estávamos todos lá, reunidos naquela cobertura de Ipanema, para abraçá-lo. Em 2016, no entanto, não foi assim. Passamos na casa dele, sentados, informalmente, em volta da mesma mesa onde ele punha em prática suas ideias. E ali comemos pizza, tomamos vinho (Gullar comia e bebia muito pouco), em família. Numa perfeita sintonia entre viver e criar, José de Ribamar e Ferreira Gullar, juntos. Era uma noite de sábado, como outros sábados na rotina dos cariocas, de temperatura amena, com a chuva mansa amortecendo o calor. A reunião, animada, era para aquele homem, que completava 86 anos, sentado na cabeceira e que estava feliz. O que ninguém poderia supor é que seria seu último setembro.

Relembro, aqui, meu amigo de tantos anos. Procuro afastar a emoção esgarçada, armadilha emotiva, alheia da cumplicidade que a amizade abastece. Ele ensinou, a mim e a todos nós, muito da vida e da arte e, mais que tudo, alegrou a nossa convivência com generosidade, talento e inteligência. Falávamos quase todos os dias, mesmo sem um assunto para tocar a conversa. Às vezes, era um tema que estava em pauta – além de sua editora, colaborei na organização de seu cotidiano literário, por muito tempo – ou algum comentário sobre a política nacional, um escândalo substituído por outro, as arbitrariedades. Ele era um ser social, crítico, muitas vezes controverso, mas fiel a suas convicções, registradas em crônicas semanais. Na política ou na arte. Ele foi a grande personalidade da poesia brasileira da segunda metade do século 20, figura incansável na defesa da liberdade, as muitas vozes que ressoam em seus poemas.

A nossa última reunião de trabalho foi na editora Autêntica, no Rio, no início de outubro. Ele foi me visitar, vindo da Academia, ali perto, para tomarmos um café e seguirmos para o lançamento da edição comemorativa dos quarenta anos do Poema sujo, agora pela Companhia das Letras. No finalzinho da tarde, fomos a pé até a livraria Da Vinci, na Avenida Rio Branco. Ele ia rápido, como era seu jeito, e detestava chegar atrasado. Chegamos antes, bem antes. Mas, comento isso para dizer que ele estava firme, nada ofegante (uma complicação pulmonar levou meu amigo) e não havia nele indício algum de doença. Ao contrário, tive que pedir que ele diminuísse o passo, que eu não estava conseguindo acompanhar o seu ritmo por causa da minha bolsa a tiracolo, pesada, com livros e papéis. Após o evento, voltamos juntos, ele me deu carona até a minha casa, em Botafogo, e continuou para Copacabana. Durante o trajeto, conversamos sobre uma possível biografia, e ele, apesar de animado, confessou que estava cansado. “É muita coisa, você sabe”.

Editei seu último livro inédito – Autobiografia poética e outros textos – que ele me confiou, quando assumi a editoria literária da Autêntica. Lançamos na Travessa do Leblon, em setembro de 2015, com um debate intermediado pelo jornalista Geneton Moraes Neto, nosso amigo comum, que também perdemos em 2016. O volume despertou muitas matérias e resenhas, mas a melhor opinião que recebi, foi de sua filha, Luciana: “Isto não é um livro, é uma declaração de amor ao meu pai”. O comentário nunca me saiu da cabeça. No fundo, editar é um ato de amor, de dedicação e cumplicidade. Quando o livro ficou pronto, levei um exemplar para ele e vi que tinha gostado do resultado. Folheou, sorriu  e, de maneira econômica, disse em tom afetivo: “Muito bonito”.

Fui vê-lo na Casa de Saúde e ele estava falante, sem transparecer desânimo. Parecia o Gullar de sempre. Mas, conhecendo seu temperamento, embora ele não se queixasse, percebi que aqueles dias deveriam ser intermináveis para ele. Queria voltar para casa, mergulhar no cotidiano, preocupado com os afazeres, a Gatinha. Estava, enfim, desassossegado com a ordem hospitalar, o entra e sai de enfermeiros, os remédios, tudo aquilo que a medicina classifica como procedimentos. Negou-se a prolongar o sofrimento, mas não ao sonho, quando pediu que a filha o levasse para o mar de Ipanema. Ainda no leito ditou, para a neta Celeste, a crônica – Arte do futuro –, confirmando a paixão de toda uma vida, que seria publicada no domingo seguinte à sua morte.

Esteve lúcido até o coração deixar de pulsar. Inteiro Gullar.

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