A experiência de traduzir (e ler) Bernardine Evaristo

30/09/2020

Por Camila von Holdefer*

 

 

É provável que muitos tenham ouvido falar de Garota, mulher, outras, da anglo-nigeriana Bernardine Evaristo, por conta do Booker Prize recebido em 2019. Foi mais do que merecido. O que a autora faz com a forma, aqueles a quem dá voz, a maneira como utiliza os detalhes — é isso que quero abordar aqui.

O livro retrata doze personagens, imigrantes ou descendentes de imigrantes de países africanos e caribenhos. Yazz, a mais jovem, é uma estudante de 19 anos; Hattie, a mais velha, é uma fazendeira de 93.

Embora haja pequenas diferenças entre uma coisa e outra, é possível dizer ou que a narrativa é mais centrada nas relações do que nas individualidades, ou que as individualidades são construídas sobretudo a partir das relações. Carole, filha de Bummi, foi colega de LaTisha e aluna de Shirley na escola. Shirley, filha de Winsome, trabalhou ao lado de Penelope e conheceu a amiga Amma ainda na infância. Amma, mãe de Yazz, fundou uma companhia de teatro com Dominique. Hattie é filha de Grace, cuja história nos chega de algum lugar do passado, e bisavó de Morgan. Há uma certa ênfase nos relacionamentos entre mães e filhas, que em Garota, mulher, outras quase nunca são fáceis ou amenos. Muitos dependem de um equilíbrio delicado, prestes a se romper. O fato é que a maneira como esses personagens interagem — aquilo que significam um para o outro, seus embates, suas discordâncias e diferenças — é a grande sacada do livro.  

Há muitas questões técnicas para um tradutor observar, que ajudam a explicar por que a prosa de Evaristo foi tão elogiada mundo afora. Primeiro, o texto é como que estruturado em versos — embora se trate de fato de prosa — e em seguida em blocos. Não há rimas, mas há, isso sim, uma cadência extremamente sonora. Equilibrar isso em uma tradução é um desafio constante. Segundo, a linguagem pode mudar do formal para o informal, ou vice-versa, numa mesma frase. Terceiro, a narração escorrega para o diálogo sem qualquer aviso prévio. (“...quando fiquei livre outra vez, me reergui e fiz uma vida pra mim bein’qui neste país, LaTisha, falando só com ela, ainda que Jayla também estivesse na mesa...”) Quarto, há uma cadência específica, que pode incluir ainda mais misturas, na voz de cada personagem.

Tudo isso exigiu algumas adaptações a fim de preservar a riqueza e a nuance do texto da autora. Para isso não há uma fórmula, como todo tradutor sabe bem.

Quando um entrevistador da BBC descreveu Garota, mulher, outras como um livro que retrataria “doze mulheres”, Evaristo precisou corrigi-lo. Morgan, diz Evaristo, foi criade como menina, mas é uma pessoa não-binária.

O capítulo de Morgan me pôs, claro, diante de alguns dos dilemas mais difíceis de todo o processo. A fim de manter a cadência do texto de Evaristo — como o estilo e o formato do livro exigem —, queria uma tradução de gender free, a identidade de gênero de Morgan no original, que mantivesse a palavra gênero + um complemento. Essa resolução inicial excluiu a possibilidade de tradução por agênero, que teria me agradado mais. Levando em conta que entre as opções disponíveis há diferenças sutis que muitas vezes dizem respeito a questões íntimas e individuais, e considerando que o discurso de Morgan não necessariamente permite determinar a mais ou a menos correta, decidi afinal por gênero neutro. Quanto aos pronomes, utilizei elu e delu, que me pareceram mais comuns entre não-bináries.

Há cenas brutais no livro de Evaristo — cenas de estupro, de tortura psicológica, de miséria e exploração —, que, se são difíceis de ler, são igualmente difíceis de traduzir. O que precisei manter e reproduzir foi, nesse caso, a extensão do horror. E o desafio da tradução passa a ser não só de ordem técnica, mas também emocional. 

É um erro, no entanto, achar que Garota, mulher, outras é um livro essencialmente triste. Sim, há um bocado de experiências traumáticas. Evaristo não teme tocar em assuntos difíceis, alguns deles pouco explorados na literatura. Num capítulo sufocante, que vai crescendo em tensão, a autora narra uma relação abusiva entre duas mulheres.

Mas veja o capítulo de LaTisha, por exemplo, em que algumas das cenas mais brutais do livro são descritas a partir do olhar bem-humorado de uma personagem irreverente. LaTisha é capaz de fazer graça até quando relembra das brigas monumentais que teve com a mãe. Ela própria admite haver algo de cartunesco na maneira que encontrou para descrevê-las; numa delas, LaTisha diz que “levou um tapa tão forte que quase saiu voando pelo cômodo e quase acabou encravada na parede — braços e pernas estatelados”. É claro que LaTisha enxerga a vida de uma maneira peculiar, a tal ponto que o adjetivo otimista mal consegue dar conta daquilo que muitas vezes é uma distorção deliberada da realidade. É aí que reside a força que permite à personagem seguir em frente, mas também a fraqueza que a impede de, entre outras coisas, compreender melhor certas situações. É uma ambivalência que não pode ser resolvida, e que é a própria essência do livro.

Falei da importância das relações alguns parágrafos acima; também nessas relações residem boa parte do drama e do humor do livro. Alguns dos segredos que os personagens ocultam (ou acham que ocultam) uns dos outros são engraçados, mas nem todos. O mesmo vale para os mal-entendidos.

***

Certos detalhes permitem entrever narrativas paralelas, ou, mais frequentemente, complementam e aprofundam as narrativas que Evaristo elabora à vista do leitor. Preste atenção aos autores e livros que os personagens citam e discutem — em como são representativos do momento que atravessam, como ilustram aquilo que pensam, sentem e em que acreditam. Dominique lia Audre Lorde de pé nas livrarias quando não tinha dinheiro para comprar os livros. Bummi leu Buchi Emecheta, As alegrias da maternidade, num período particularmente turbulento da relação com a filha. Winsome, que faz parte de um clube do livro, gosta muito de Olive Senior, Rosa Guy, Paule Marshall, Jamaica Kincaid, Marise Condé e Grace Nichols. Decepcionada com as referências intelectuais do pai, que no geral se restringem a autores homens e brancos, a jovem Yazz pergunta a ele se conhece, entre outros, bell hooks, Aimé Césaire, Angela Davis, Frantz Fanon, Gayatri Spivak, Gloria Steinem, V. Y. Mudimbe e Cornel West. Roxane Gay é citada em outro momento como uma das referências de Yazz. É significativo que Penelope, que não se vê como uma mulher negra, tenha Betty Friedan e revistas femininas como referencial.     

Mas os detalhes mais impressionantes — graças ao que revelam, ao seu próprio funcionamento como ferramentas de mediação e representação — têm relação com a comida. Às dimensões cultural e afetiva, sempre presentes quando se fala de comida, Evaristo acrescenta um caráter que é também simbólico. Só posso esboçar o assunto a fim de mostrar a riqueza de conexões que são formuladas para parecer arbitrários, mas que são o oposto disso.

Os aspectos cultural e afetivo são, de novo, os mais óbvios e mais evidentes. A comida ocupa um lugar importante nas lembranças que Bummi guarda da Nigéria, e é a principal forma que a personagem encontra para se manter ligada ao lugar querido que deixou para trás. É sobretudo através da comida que Bummi, ao mesmo tempo em que a nutre, transmite à filha Carole sua herança nigeriana.

Quando Carole se afasta das raízes nigerianas, a mudança transparece acima de tudo nos hábitos alimentares. Com novos amigos ingleses, Carole passa a valorizar uma espécie de estilo de vida (o lifestyle do Instagram, digamos) em que a relação com a comida é mediada não pelo afeto ou pelo interesse por uma tradição, mas antes depende de uma afetação pretensamente cosmopolita. Ao “refinar” seus costumes, Carole descobre que você não deve comprar pãezinhos congelados para assar em casa, apenas “brioches frescos, aerados, delicados, macios”. A relação com a mãe se deteriora, num estranhamento mútuo que vai dos costumes à mesa ao alimento servido. Bummi “comia com as mãos o mingau de inhame que a filha amava antes de ir para a universidade e antes de começar a dizer que ele parecia cimento morno”.

Em duas ou três frases sumárias, a comida determina não só o caráter de certas relações, mas aquilo de que se constituem — a culpa, a dor, a alegria etc., com as respectivas carências e excessos. Quando Dominique, nascida na Inglaterra, conhece Nzinga, née Cindy, nascida nos Estados Unidos, logo pensa em “broa de milho quente, costeletas, gumbo, jambalaya, couve com bacon, torresmo, repolho frito, pé-de-moleque — e outras comidas a respeito das quais ela tinha lido em romances escritos por mulheres afro-americanas”. Alguns meses depois, imobilizada por Nzinga numa relação abusiva, incapaz de reagir, Dominique é forçada a comer uma comida sem sal e sem tempero que supostamente faria bem para seu organismo. Nzinga prepara e determina tudo o que ela ingere. Quando consegue escapar e fica livre para comer o que quiser, Dominique vomita.

Quando Shirley relembra a festa repleta de imigrantes em que conheceu Lennox, o homem com quem viria a se casar, o curry no fogo é importante o suficiente para ser mencionado ao lado da música e da dança. Em outra cena, quando já dividem o mesmo teto, Lennox está cozinhando enquanto “o cheiro de cebolas cortadas e alho picado chiando na panela” impregna o ar. É aí que um casal de idosos (britânicos?) do andar de cima desce para reclamar e dizer que nunca tinha sentido nada “tão asqueroso” em mais de sete décadas. (Cebola e alho, o aroma da vida!) Indignada, Shirley bate a porta na cara dos dois.

Claro que o trecho é uma piada de Evaristo com o inevitável choque cultural entre referenciais culinários tão distintos. A personagem mais inglesa do livro, Penelope — cujo repertório, digamos, é distinto daquele de Winsome, que nasceu em Barbados e prepara pratos frescos e exuberantes com muito coentro, tomilho e limão —, come ervilhas na manteiga com costeletas. Não é à toa que Amma, quando lamenta a gentrificação de Brixton, deplora “os restaurantes e bares metidos a besta” que ocupam o lugar de um mercado diversificado que vendia inhame, pimenta caribenha e caramujos africanos.

Os exemplos vão muito além. Para Hattie, cozinhar (e plantar a própria comida) significa manter a autonomia que ela tanto valoriza numa idade avançada. Grace só descobre o prazer de cozinhar quando cozinha para própria família, e não para a dos outros.

Enfim. Não lembro de ter lido um livro em que a comida desempenhasse um papel tão central e determinante, nem um em que parecesse tão, tão deliciosa. (Sim, sou de touro. Maio.)

***

Devo à Alice Sant’Anna a felicidade de traduzir Garota, mulher, outras.

Por fim, tradução nenhuma é o trabalho de uma pessoa só. Deixo aqui meu agradecimento aos profissionais que contribuem para que um livro chegue até os leitores.

 

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Camila von Holdefer Kehl é bacharel e mestranda em filosofia. É crítica e tradutora de literatura, tendo colaborado com a Folha de S.Paulo e as revistas Quatro Cinco Um e Serrote.

 

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