Recentemente, a revista Marie Claire fez uma matéria “7 escritoras que começaram carreira na maturidade e estão entre as mais poderosas do mundo.” Socorro Acioli, por exemplo, citou Cora Coralina (primeira publicação aos 76), Conceição Evaristo (aos 44 anos). Fabiane Secches indica (a ganhadora do Nobel) Toni Morrison, que teve sua primeira publicação aos 39. Eu me lembro de repostar e falar: finalmente um texto que não causa ansiedade.
E antes de continuar, sei que não tenho lugar de fala. Tive minha primeira publicação aos 19 pra 20 anos. E sei que “lugar de fala” não se usa dessa maneira. É uma piada, internet. Sou “jovem autora” há quase dez anos no meio literário, tempo suficiente pra ver todo o tipo de pessoa autora e formar minhas opiniões. Comecei a publicar ainda na faculdade de Relações Internacionais e quando me formei, me dei conta que esse negócio de livros podia vingar se eu me dedicasse de forma integral. Tive tempo e o momento era bom pra “tomar decisões de carreira”. Sou branca, com acesso à educação, não tinha filhos e morava com minha mãe. É desse local que falo.
Aliás, antes antes de continuar: não estou seguindo o recorte de gênero da matéria da revista. Muitos homens também começam a publicar e escrever tarde, por motivos diferentes que mulheres. Mentira: às vezes os motivos são os mesmos. Mas é outro debate, outro texto. Vamos falar dessa tal idade ideal.
Sei que comecei jovem. A primeira questão aí é que me parece que começar jovem se opõe à ideia de começar “velho”. E a ideia de “velho” já se liga à ideia de “tarde”. Ainda citando a citação da matéria, Socorro Acioli diz: "Acho que nem é correto a gente dizer que essas mulheres escreveram tarde, sabe? Elas escreveram em um momento da vida em que já tinham acumulado experiência, maturidade e preparação.” Sendo honesta, acho que poderia parar aqui. Fechar o arquivo, mandar o e-mail, boa noite, boa sorte.
Mas me surgem algumas dúvidas. A primeira: por que a pressa pra estrear? A segunda: quem disse que tem uma idade certa pra ser escritor?
Converso muito com aspirantes a autores e, em uníssono, todos parecem querer publicar pra ontem. Uma vez, um autor queria contratar uma leitura crítica minha com o prazo de dois dias, porque queria publicar ainda em agosto. Ao ser questionado, ele me disse que era porque a editora disse que se entregasse em setembro, o livro seria publicado em outubro. Ele alegou que um livro publicado em outubro ainda concorreria ao prêmio Jabuti do ano corrente, e ele queria ganhar o prêmio pra se tornar um autor de sucesso. Nem entrei no mérito da idealização sem sentido da tartaruguinha. Mas chamei a atenção pro fato de que ele teria quase nada de tempo para acatar ou discutir sugestões. Além disso — mesmo que o livro fosse irretocável —, um processo de edição, revisão, diagramação e copidesque feito em um mês não seria necessariamente de maior qualidade. Uma editora um pouco maior geralmente demora uns seis meses quando o processo é rápido. Ele parou de me responder.
Se eu pudesse dar um conselho é: não tenham pressa pra publicar. Sei que são poucos editais, poucos prêmios pra originais, surgem poucas oportunidades. Mas pergunto com toda a honestidade: por que o livro precisa ser publicado em 2020, em outubro?
Claro que é uma pergunta muito pessoal. Claro que publicar é uma alegria imensa. Mas seu livro é Um paciente chamado Brasil, o livro do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta? Seu livro trata de tópico extremamente atual com informações que se desatualizam a cada dia? Então azar da data. O momento em que o livro é publicado, com a melhor edição, com o melhor cuidado, com o maior número de opiniões, revisões e releituras, é o melhor momento pra este material. Não antes. Não depois. Pense assim: a cada frase que você escreve, você está se tornando um autor melhor. Cada frase reescrita. Você não quer que seu livro seja a melhor amostra possível do seu trabalho como autor?
Vejam bem: entendo que essa frase pode criar o efeito inverso na pessoa que aspira a escrever. Mas aí é uma questão de achar o ponto e o ponto de término, e já falamos nisso naquele textinho sobre o processo criativo. Calma.
Dito isso: não há idade certa pra começar a publicar e entrar na “carreira de escritor”. Entra aí também o fato de que inclusive apagaria trechos, quiçá contos inteiros, que já foram publicados. Ser publicado é que nem uma tatuagem: pode tentar esconder, mas sempre deixa uma cicatriz. As pessoas sempre vão ter acesso.
Escrever não é que nem ser ginasta olímpico, que tem que começar jovem. Rimbaud estava ganhando prêmios aos quinze. Se a questão da ansiedade da idade com publicação é uma dificuldade tão grande pra você, recomendo este artigo em inglês com a idade de 101 autores ao publicarem seu primeiro trabalho literário. Aliás, nem precisa de tradução: tem uma imagem. O infográfico é só número da idade e o nome do autor. Nabokov estreou aos dezessete. O último número é 41 anos. Mas Raymond Chandler publicou o primeiro conto aos 45. Marcel Proust, 42. Laura Ingalls Wilder, autora de Uma casa na floresta, estreou com 65 anos. J. R. R. Tolkien — autor da série O senhor dos anéis com livros cheios de mitologia, criando idiomas, fazendo surgir um fenômeno que gerou um cavalo midiático com séries, filmes, peças, jogos — estreou com O Hobbit com 45.
Existe um fetiche com essas listas com números: quarenta com menos de quarenta, essas conversas. Até mesmo aqueles programas com crianças que tocam piano enquanto sopram gaita e fazem malabarismo. Como se começar jovem fosse sinal de algum tipo de poder paranormal. Não existe idade certa. Tem gente que só consegue publicar e obter reconhecimento póstumo. É um aspecto negativo da nossa cultura, essa luta contra o envelhecimento, contra rugas, uma indústria inteira que se alimenta de nossos medo de nos aproximar da morte. Porque envelhecer é se aproximar da morte. E, cá entre nós, a boa literatura só existe quando olhamos a morte de frente.
Um post-scriptum: Luiz Alfredo Garcia-Roza lançou seu primeiro livro aos sessenta anos — e ganhou o tal Jabuti com a estreia. Eu disse ou não disse que valia a pena esperar e publicar um livro bom?
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Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.