Mulher negra, essa quilombola

20/11/2022

*O texto abaixo integra o livro Por um feminismo afro-latino-americano, reunião de ensaios da filósofa, antropóloga, professora, escritora, militante do movimento negro e feminista precursora Lélia González. A obra, lançada em outubro de 2020 pela Editora Zahar, foi organizada pelas pesquisadoras Flavia Rios e Márcia Lima.

 

Mulher negra, essa quilombola

 

De repente, o grande público toma conhecimento da importância do 20 de novembro para nós, negros deste país. Justamente porque a morte de Zumbi se transfigura no ato que, por excelência, aponta para a vida. Ao morrer, Zumbi continuou vivo, permanecendo na consciência de seu povo e também na dos opressores desse povo.

 

Palmares, sociedade alternativa

No primeiro caso, transformou-se no símbolo da resistência e da luta por uma sociedade alternativa, onde negros, índios e brancos fossem considerados a partir daquilo que os torna iguais — sua humanidade — e organizados a partir dos critérios democráticos com a justa distribuição dos frutos do seu trabalho. E não há dúvida de que Palmares foi a primeira tentativa de criação dessa sociedade igualitária, onde existiu uma efetiva democracia racial. Por aí se pode compreender por que os movimentos negros do período pós-abolição tiveram nela e em Zumbi a garantia histórica e simbólica de suas reivindicações. E não foi por outra razão que, em 1978, em memorável assembleia realizada em Salvador, o Movimento Negro Unificado estabeleceu o 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. No segundo caso, ele personificou a ameaça da perda de privilégios de raça e classe, sempre presente e perigosa para o dominador. Não é por acaso que Zumbi se encontra no imaginário popular nordestino, caracterizado como um malvado demônio noturno que rouba crianças malcomportadas (o que, aliás, não deixa de ser uma bandeira).

 

O papel da mulher negra

Mas cabe aqui uma pergunta: onde é que a mulher negra entra nesse papo? Será que vamos falar de Dandara ou de Luísa Mahin? Não especialmente. Mas enquanto quilombolas, não há dúvida. É claro que, aqui, o termo está sendo tomado num sentido mais amplo, metafórico mesmo. A mulher negra tem sido uma quilombola exatamente porque, graças a ela, podemos dizer que a identidade cultural brasileira passa necessariamente pelo negro. E, numa primeira aproximação, podemos afirmar que ela só tem a ver com os dois tipos de permanência de Zumbi na cabeça da moçada. Tentemos explicar. Enquanto escrava, ela foi dirigida para diferentes tipos de trabalho, que iam desde aquele no campo (plantação de cana, de café etc.) até o trabalho doméstico. No primeiro caso, enquanto escrava do eito, ela estimulou os companheiros para a revolta, a fuga e a formação de quilombos. Enquanto habitante destes últimos, ela participou, como em Palmares, das lutas contra as expedições militares destinadas à sua destruição, nunca deixando de educar seus filhos dentro do espírito antiescravista, anticolonialista e antirracista. Em termos de trabalho doméstico, vamos encontrá-la na função de mucama e/ou ama de leite. Nessas circunstâncias, ela mantinha um contato direto com seus senhores, assim como com tudo aquilo que tal contato implicava (desde a violência sexual e os castigos até a reprodução da ideologia senhorial). Mas foi justamente a partir daí que ela fez a cabeça do dominador, sobretudo ao exercer a função materna enquanto “mãe preta”.

 

Resistência passiva

De acordo com opiniões meio apressadas, a “mãe preta” representaria o tipo acabado da negra acomodada, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu da maneira mais cristã, oferecendo a face ao inimigo. Acho que não dá para aceitar isso como verdadeiro, sobretudo quando se leva em conta que sua realidade foi vivida com muita dor e humilhação. E justamente por isso não se pode deixar de considerar que a “mãe preta” também desenvolveu as suas formas de resistência: a resistência passiva, cuja dinâmica deve ser encarada com mais profundidade.

Papo vai, papo vem, ela foi criando uma espécie de “romance familiar”, cuja importância foi fundamental na formação dos valores e das crenças do nosso povo. Conscientemente ou não, ela passou para o brasileiro branco as categorias das culturas negro-africanas de que era representante. Foi por aí que ela africanizou o português falado no Brasil (transformando-o em “pretuguês”) e, consequentemente, a cultura brasileira. E, no caso nordestino, foi contando história pro “sinhozinho” que ela transou o Zumbi enquanto figura ameaçadora de crianças malcriadas. Pois é…

A situação da mulher negra, hoje, não é muito diferente de seu passado de escravidão. Enquanto negra e mulher, é objeto de dois tipos de desigualdades que fazem dela o setor mais inferiorizado da sociedade brasileira. Enquanto trabalhadora, continua a desempenhar as funções modernizadas da escrava do eito, da mesma mucama, da escrava de ganho. Enquanto mãe e companheira, continua aí, sozinha, a batalhar o sustento dos filhos, enquanto o companheiro, objeto da violência policial, está morto ou na prisão, ou então desempregado e vítima do alcoolismo. Mas seu espírito de quilombola não a deixa soçobrar.

 

Marli mulher

Acordar cedo, pegar água na bica, deixar as coisas adiantadas para que a filha mais velha termine, trabalhar nas casas de madames ou como servente no supermercado. Voltar à noite, lavar umas “roupinhas”, acordar mais cedo no dia seguinte pra enfrentar a fila no posto de saúde porque uma das crianças está doente etc. etc… Nada disso a faz esmorecer. Em matéria de dupla jornada, estratégias de sobrevivência e coisas que tais, ela é escoladíssima. E, muitas vezes, pensamos em Marli Soares:* ela sempre dá um jeito de ir ao samba pra exercer sua ludicidade, e com todo o direito. Curte um Carnaval como ninguém e adora desfilar na avenida. E não deixa de ir ao terreiro ou ao centro, porque põe fé nos orixás ou nos guias. Pode ter medo de barata, mas de polícia não. E se a isso se acrescenta um mínimo de consciência política, a gente sabe no que vai dar.

Por aí dá pra entender por que o primeiro passo que a mulher negra dá, em termos de conscientização, tem a ver com a luta contra o racismo, posto que não só ela, mas seus filhos, irmãos, parentes, companheiro, amigos e conhecidos dele são vítimas. Depois é que ela saca o lance do sexismo. Sua participação nos movimentos negros foi e tem sido cada vez mais intensa, da maior significação. Quando a gente anda por este Brasil afora e conhece os movimentos negros regionais, uma coisa se evidencia com a maior clareza: a presença crescente, e muitas vezes majoritária, do mulherio. E, ainda mais, dá pra perceber que as lideranças desses movimentos, em muitos casos, é dela, mulher negra. O que não é de espantar, pois, enquanto setor mais explorado e oprimido, e consciente disso, ela vê muitas coisas do sistema não só na sua estratégia de exploração dos trabalhadores, mas enquanto organização racista e sexista. Consequentemente, sua luta se dá em três frentes, e, quanto mais desenvolve sua prática em termos de movimento, mais sua lucidez e sua sensibilidade se enriquecem. De repente, ela acaba tendo um jogo de cintura muito maior do que acreditava possuir.

 

Herdeira dos quilombolas

Nesse sentido, ela é a grande herdeira dos quilombolas, como Dandara e Luísa Mahin, de Tia Ciata e Mãe Senhora; mas sobremodo da grande massa anônima que na casa-grande ou na senzala, no eito ou nos quilombos, no candomblé ou na umbanda, nos ranchos ou nos afoxés garantiu a sobrevivência de todo um povo enquanto raça e cultura.

Aqui nas Alagoas, um grupo de mulheres negras de diferentes estados, representantes ou não de movimentos negros, se preparou para subir a serra da Barriga, onde se situava a capital de Palmares, o mocambo do Macaco. O projeto do Memorial Zumbi, do qual fazemos parte, realizou um ato solene, uma homenagem a Zumbi, no 20 de novembro. Enquanto isso, no resto do país, uma série de eventos estavam acontecendo neste Dia Nacional da Consciência Negra, promovidos pelos movimentos negros. E lá no alto da serra, durante a solenidade, ficamos pensando naquelas palmarinas, que preferiram matar os próprios filhos e se suicidarem em seguida para não se deixarem escravizar.

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Lélia Gonzalez (1935-1994) foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX, com atuação decisiva na luta antirracista. Formada em geografia, história e filosofia — e dedicada aos estudos da psicanálise, da sociologia e da antropologia —, mobilizou conceitos de áreas diversas. Fundou o Movimento Negro Unificado, participou da formação de partidos de oposição ao regime militar, lecionou na UERJ e no Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, do qual também foi diretora. Publicou diversos artigos em revistas acadêmicas, na imprensa alternativa e em jornais de grande circulação. É autora de Lugar de negro (com Carlos Hasenbalg) e Festas populares no Brasil.

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