As lições monstruosas de criação de "O corcunda de Notre Dame", "Drácula" e "Frankenstein"

01/06/2021

 

Sei que falo bastante da minha formação como leitora e escritora por aqui, mas é porque até hoje vejo alguns pontos essenciais. Como autora, como alguém que começou a ter “sucesso” (muitas aspas) relativamente jovem, como alguém atacado com síndrome de impostor dia sim e o outro também, eu me faço a pergunta: mas da onde isso? Sim, tampouco eu sei muito bem.

Já escrevi bastante sobre minha relação com fanfic por aqui (e aqui ou aqui também) e de fato enxergo a fanfic como uma faísca literária essencial, uma vontade de participar de uma conversa que já existia, uma mudança na dinâmica leitor-autor. Samir Machado de Machado sempre brinca que, depois da Eneida, toda a literatura é fanfic, porque toda a obra acaba usando a outra de referência ou base. Antes da aula desse mesmo Samir para os clássicos Zahar, descobri que a citação é de Michael Chabon em um ensaio sobre fanfics de Sherlock Holmes. Criei uma fanfic de citação.

Então, talvez já tenha falado bastante de fanfics, do produto dessas influências, mas nunca do que as influenciou. E não estou falando aqui no sentido de que fiz fanfic de Harry Potter porque achava todos os casais muito heteros. Estou falando de todos os autores que fizeram esses diálogos possíveis antes de sequer escrever uma linha de Draco x Harry. Estou falando, como já falei em entrevistas variadas, de meu histórico como leitora, que ia de Desventuras em série até Borges no mesmo dia. Folheei Grande sertão: veredas sem ter entendido nada, mas de noite, achava que entendia Fernando Pessoa. Em algum lugar nessa geleia geral se formou uma espécie de voz autoral e, se não autoral, de leitora.

Recentemente, me perguntaram se tinha algum livro clássico que havia me impactado muito como leitora — em especial, pensando numa potencial participação numa fala do maio dos clássicos Zahar. Imediatamente comecei a listar minha adolescência gótica (no sentido adolescente do termo): O corcunda de Notre Dame, Drácula, O Fantasma da Ópera, Frankenstein. Nem sabia sobre o que poderia ser a aula. Não sou especialista em nenhum dos autores e de O Fantasma da Ópera lembrava mais do musical do que do texto. Mas me lembrei dessas leituras no meio da geleia.

Para pensar se toparia, comecei a folhear Frankenstein sem pretensão, dar uma relida em trechos e tudo se conectou. Essa imagem é mais do filme que do livro, mas: um raio desceu, e a ideia voltou à vida. It’s alive.  A fala vinha à tona. Como é bem escrito Frankenstein. Bem construído, boa disposição de cenas e resumos, bom ritmo, uso do mostrar versus dizer. Claro que eu lendo o livro com 15 anos, não tinha essa visão e análise. Não poderia dizer o narrador e sua voz e pipipi e popopó. Mas é essa a beleza do clássico: o livro não muda, mas o leitor sim, melhorando o texto.

Comecei a ver coisas para apontar para alunos em oficinas e mentorias. O uso de diálogos em O corcunda de Notre Dame talvez não seja o mais contemporâneo, mas olha só essas descrições. Olha só como essa cena se organiza. Sempre mando meus alunos começarem a colocar os óculos de autor ao ler. Como essa cena nasceu? Por que me sinto tensa ao ler essa frase? Por que rio com aquela frase?

“O protagonista do Drácula nunca fala ‘ai, que medo!’ Esse medo é construído pelo autor na descrição, nas cenas.” Essa é uma piada-exemplo que uso com meus alunos, e eles entendem de imediato. Mas quando eu havia lido Drácula com essa frase em mente? Nunca, sendo honesta. Eu o li antes de entender a teoria de criação. Certamente Bram Stoker também, mas isso é outro debate.

Hoje como alguém que trabalha como autora, tradutora literária, às vezes edito, consigo ver que esses livros são exemplos claros de habilidade técnica servindo a uma história. O escritor sempre fica preso com o interesse em abrir o capô do carro, ver como o motor funciona. E neste instante, aceitei fazer a fala, porque há coisas que se pode falar nesse sentido. Como eu poderia falar da bela construção desses livros e de como autores ainda poderiam ter exemplos neles. Não só autores de fantasia, diga-se de passagem: autores de ficção “literária” (mais aspas) como eu, autores de não-ficção inclusive.

Voltando à pergunta do por quê?, sei que minha formação como leitora teve impacto. Vendo esses livros e a habilidade com as quais foram escritos, algo influenciou algo. Não escrevo fantasia, mas talvez a noção de boa cena versus resumo venha de Frankenstein, que é impecável nesse sentido.

Faço o convite para que venham ver as lições monstruosas de criação de Drácula, Frankenstein e O corcunda de Notre Dame no mês dos clássicos Zahar. Deixo aqui o link para a fala (dependendo de quando o texto for ao ar, ela pode estar prestes a acontecer).  Minha ideia é trazer exemplos, explicar o que quero dizer quando falo “mostrar versus dizer” e “equilíbrio entre cena e resumo”. Por uma questão de duração da aula, precisei eliminar O Fantasma da Ópera. Mas nós vamos entrar no laboratório de Victor Frankenstein, não pra ver como construir um ser vivo novo, mas sim para ver como descrever esse ser mais tarde. Nós, os monstros vivos, ainda temos muito a aprender com eles em termos de técnica de escrita.

 

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Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges PolessoMarcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

 

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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