Espelho vazio, luz parada

18/06/2021

 

Um homem de meia idade olha para sua imagem num espelho e estranha o que vê. Desconfia do espelho. Essa cena se repete em todos os livros de Don DeLillo de que consigo me lembrar, e aparece mais uma vez em seu novo romance, O silêncio.

Essa desconfiança em relação à capacidade de algo (o espelho, a palavra, a arte) representar uma outra coisa (a realidade, a verdade, a vida) é um tema forte em sua obra, e é fascinante acompanhar o autor tentando lidar com isso. É um esforço para mostrar ao leitor alguma coisa, um lampejo que seja, do que é genuinamente real, daquilo que está fora do alcance do inteligível. São muitos os espelhos usados, com variados graus de distorção da luz.

O livro se passa numa Nova York pós-covid, em 2022, e tem como evento central uma "falha tecnológica catastrófica" que inutiliza todas as formas de tecnologia. De aviões a celulares, de elevadores a microondas, tudo para de funcionar de repente. Telas de smartphones e televisões transformadas em superfícies brancas, luminosas, inúteis.

A questão da desindividualização, outro tema recorrente para DeLillo, aparece com força aqui. O primeiro personagem apresentado, Jim Kripps, possui apenas duas características: é alto e corcunda. Nada mais nos é dado para visualizar este funcionário de uma seguradora que passa um voo internacional inteiro lendo em voz alta as informações de bordo fornecidas na pequena televisão de seu assento. Velocidade de vôo, temperatura exterior, hora prevista de chegada: essa série infinita de informações estéreis acalmam Jim, mas o auto engano é evidente e cômico para o leitor: a ilusão de que ao ter acesso a mais dados, temos algum controle sobre eles. Em Zero K, ou Ruído branco, os personagens eram fascinados pela metereologia, aqui a sedução é exercida pelo computador de bordo. Espelhos diferentes refletindo a mesma imagem. O mundo de DeLillo é um mundo soterrado por dados inúteis.

O livro acompanha os efeitos que o colapso tecnológico tem em cinco pessoas que planejavam assistir juntas ao SuperBowl, o maior evento esportivo americano. As reações iniciais de cada um variam da negação total da realidade a picos de libido inexplicável. Um apostador contumaz, frustado com a tela branca a sua frente, toma para si a narração do evento que não pode mais ver e passa a imaginar jogadas em voz alta, imitar as reações da torcida e narrar propagandas de remédios. Um casal foge da enfermaria onde está sendo atendido e se tranca num pequeno banheiro, buscando saciar um desejo urgente, vindo de não se sabe onde.

À medida que as horas passam, todos convergem para o apartamento onde assistiriam ao jogo, e se inicia a parte mais interessante e difícil de descrever do livro. Os personagens começam a conversar, mas aos poucos perdem a necessidade de um interlocutor e o diálogo se transforma numa série de solilóquios, cada vez mais entrecortados.  

Dois dos personagens são professores de física, um deles apaixonado pelo trabalho de Albert Einstein e sua teoria da Relatividade. Ele diz, em certo momento:"Einstein, Heisenberg, Gödel. Relatividade, incerteza, incompletude. Eu estou futilmente tentando imaginar todos os quartos, em todas as cidades onde o jogo está sendo transmitido. Todas as pessoas assistindo atentamente ou sentadas como nós estamos, confusas, abandonadas pela ciência, tecnologia, senso comum."

É como se ao extirpar os humanos pós-modernos de sua preciosa tecnologia, seria extirpada também nossa ideia compartilhada de tempo. Já em Ponto omega, DeLillo escrevia: "As cidades foram construídas para medir o tempo, para retirar o tempo da natureza. Tem uma contagem regressiva infinita. Quando você retira todas as superfícies, quando você olha dentro da coisa, o que resta é o terror"

Em O silêncio, o tempo linear parece morrer juntamente com nossos celulares, televisores e aviões. A maneira última de fugir da morte é abolir a passagem do tempo. Mas a que custo? Lembro de um conto de Borges, “O imortal”, em que os habitantes de uma cidade perdida no deserto conseguem atingir a vida eterna, mas com esta conquista perdem sua capacidade de atribuir sentido à própria vida, tornam-se "trogloditas cegos, devoradores de serpentes". Os personagens em O silêncio parecem experimentar algo parecido. Aos poucos, cada um dos cinco integrantes do apartamento vai desaparecendo para os demais, incapazes de se comunicar entre si, ou mesmo de se fazer notar ou de encontrar sentido em existir, esmagados no "horizonte de eventos" gerado pelo buraco negro tecnológico.

Impossível falar de morte em DeLillo e não compará-lo à maneira como seu contemporâneo e conterrâneo Philip Roth trata o tema. A morte em Roth me parece menos aterrorizante que em DeLillo, em parte porque em Roth há uma escapatória viável, o desejo, a alteridade atingida ou pelo menos ansiada através da vontade primitiva. Isso não parece funcionar no mundo de DeLillo. Neste planeta, os personagens todos parecem anestesiados contra qualquer satisfação ou conforto possível através da pulsão de vida, de Eros. É apenas Tânatos quem reina, a pulsão de morte.  Mais um poderoso espelho do nosso mundo atual.

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Marcelo Vicintin é escritor, seu primeiro romance, As sobras de ontem, foi publicado em 2020 pela Companhia das Letras.

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