Alô. Telefonista? Não desligue, quero falar com você.

29/06/2021

 

– Alô. Telefonista? Não quero falar com nenhum ramal. Com ninguém em particular. É com você mesmo que eu quero falar. O quê? Tudo. Tudo e nada ao mesmo tempo. Falar simplesmente. Morou? Como? Bem, eu sei que você não é de papo furado. Usa o máximo de economia de palavras. Às vezes chega até ao som gelado de uma gravação, à lembrança de uns lábios impessoais, repetindo invariavelmente o eterno recado. Não importa. Converse assim mesmo comigo. Ou, antes, me deixe conversar com você, sem obrigação de resposta. Me deixe falar solto, só hojezinho, só nesta manhã clara. Juro que não repetirei a infração ao Código de Comunicações.

Não precisa responder. Mas também não desligue, por favor. Preciso ter certeza de que você está me escutando. Só isso. Me escutando com a mesma paciência que concede ao milhão de vozes apressadas e até mal-humoradas que têm urgência de dialogar e não podem esperar uma fração de segundo. Você, tão revestida de paciência como da roupa mágica dos heróis de quadrinhos. Você, treinada espiritualmente para receber com a mesma serenidade todas as queixas e reclamações, todos os impropérios contra as falhas da tecnologia mais sofisticada, como se fossem falhas pessoais suas. Você, que tanta gente imagina um ser sem carne e sem alma, espécie de máquina acoplada a outras máquinas, numa engrenagem eletrônica obrigada a atender a todas as exigências, inclusive o menor de nossos caprichos, o papo mais fútil das dondocas e dos desocupados.

Eu mesmo – por que mentir? – já tive momentos pouco simpáticos para com você, culpando-a pela demora ou pela impossibilidade de atendimento que não dependia da sua vontade, mas do tempo, dos aparelhos ou do imponderável acaso. E mesmo não a culpando diretamente, às vezes descarregava em você o meu azedume contra os erros deste país ou contra o calo do meu pé. Todo usuário se julga um reizinho com outro reizinho dentro da barriga, senhor onipotente do céu e da terra. Mas logo me arrependia, e hoje acordei com uma vontade danada de lhe pedir desculpas pela injustiça e de – posso? – lhe fazer uma declaração de amor.

Ah, um amor que não cobra nada de você, nem mesmo um seco “Tô ciente”. Amor feito de gratidão, admiração, remorso, compreensão, suavidade, ternura desajeitada, desejo de atrapalhar o menos possível sua vidinha de assalariada, cliente ou não do extinto BNH, aspirante à garantia na poupança e ao doce fim de semana com o seu marido, o seu namorado, o seu filhinho.

É isso aí. Cabem muitas sutilezas nesse amor que estou confessando. E a menor delas não é a da gratidão, que não é só minha, mas de toda gente no mundo que tem uma aflição a aliviar, um negócio a resolver, um lance de vida ou de morte dependente do número de um telefone e de uma criatura invisível e benfazeja, que nem sequer nos conhece, mas está dia e noite a nosso serviço, como intercessora ou sacerdotisa de uma religião de boa vontade.

É só, telefonista. Ciao

Carlos Drummond de Andrade

 

***

 

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira (MG), em 1902. Estreou em 1930, com Alguma poesia, e nos cinquenta anos seguintes publicou obras como Sentimento do mundo, A rosa do povo, Claro enigma e outras. Morreu no Rio de Janeiro em 1987, aos 84 anos.

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