Ninguém está prestando atenção

26/10/2021

Por Mirna Queiroz*

 

Victor Heringer publicou intensamente entre 2013 e 2018. Chamou a atenção da crítica com o seu romance O amor dos homens avulsos (Companhia das letras, 2016). Mas antes já havia vencido o segundo lugar do prêmio Jabuti com o romance Glória (7Letras, 2012; Companhia das Letras, 2018). Como muitos jovens da sua geração, Victor era multifacetado. Além da prosa de ficção, dominou também, com habilidade comum a autores mais experientes, a linguagem do ensaio, da poesia, da videoarte e da crônica. Era o que ele próprio apontava como um novo artista total.  “Romancistas fazem HQ, poetas fazem vídeo, desenhistas fazem poesia, um muito promissor et cetera desponta no horizonte. O artista total parece renascer, após sua morte prematura no Renascimento e breve despertar na mítica era das vanguardas. E, por sua vez, o tempo deste novo artista não tem uma só linguagem extrema que o defina; ele é definido, justamente, pela babel de linguagens, todas extremas, todas significativas.”

Eu só descobri este vigor criativo em 2013. Até então, não havia lido nada do Victor. Por graça do algoritmo, passara pela minha timeline no Facebook o vídeo “Oi, você sumiu”: em 4’21, um tratado sobre a desatenção, a indiferença, a própria incomunicabilidade. Mal terminara de assisti-lo e já estava escarafunchando tudo sobre o autor, um jovem que indagava o seu tempo com ternura num Brasil que começava a expor a bile sem qualquer cerimônia nas vias virtuais e reais do país. Vimos no que deu. Entrei em contato com ele pelo Messenger, e logo já estava recebendo um conto de sua autoria, publicado na revista em setembro de 2013, e dois poemas que ficaram até recentemente perdidos na caixa de email. Eu queria lê-lo mais. Pedi ao Carlos Henrique Schroeder, então editor da Pessoa, que o convidasse para integrar nosso time de cronistas, ao que ele aceitou prontamente. São estas crônicas, publicadas na seção Milímetros da revista, que chegam agora a um maior número de leitores, como era o seu desejo, no livro Vida desinteressante, da Companhia das Letras, com organização cuidadosa de Schroeder.

Os 70 textos revelam um observador original: não apenas por olhar muitas vezes o que ninguém estava olhando, e “olhar com olhos de ver”, mas por ter privilegiado o ponto de observação do campo do sensível. Victor não se limitou a denunciar o cinismo, a “sujeira demais em nós”: procurou edificar o seu contrário, o mundo – um mundo em que há lugar para experiências humanas autênticas. Foi crítico, sem jamais deixar de ser generoso. Passados quatro anos desde sua última contribuição para a revista Pessoa, suas reflexões seguem iluminando. São atuais, como se tivessem sido elaboradas ontem, principalmente as que falam do Brasil. Ou vai ver que o Brasil é essa coisa arcaica mesmo, teima em permanecer no passado, diria ele.

Leio não só as crônicas, mas toda a obra de Victor na chave da metafísica pós-niilista de que trata Josep Maria Esquirol em A resistência íntima (Edições 70, 2020). Neste ensaio, Esquirol defende a filosofia da proximidade, a resposta possível ao absurdo da nossa existência. Ajuntar-se para não se desintegrar. Uma forma de resistir “ao domínio e à vitória do egoísmo, à indiferença, ao império da atualidade e à cegueira do destino”.

Em livros, textos e arte que espalhou por jornais, revistas e plataformas digitais várias, a proximidade foi o gesto maior de Victor. Ele estava prestando atenção.

***

Mirna Queiroz é editora, curadora e jornalista luso-brasileira. Tem mestrado em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente vive entre Lisboa e São Paulo. É diretora da Revista Pessoa e da Associação Cultura Mombak. 

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