Intimidade com os fantasmas

15/12/2021

 

 

Descobri esse livro por acaso em uma livraria de Palermo, em Buenos Aires, uns dez anos atrás. Galería de los ladrones de la Capital (1880-1887), de Fray Mocho. Até então não tinha ouvido falar em Fray Mocho, e ainda hoje só raramente escuto alguma menção ao seu nome. Era um volume fino, em brochura, com a estampa embaçada de um revólver na capa. A editora, que não sei se sobrevive, roubava o nome – Tantalia – de um conto de Macedonio Fernandez. A obra saía pela coleção “Rarezas”, edição de 2006. Pela orelha e pela contracapa, não dava para saber exatamente do que se tratava. A diagramação soava mais caricatural do que sóbria; o título, que podia ser documental, flertava com o farsesco. Pela ficha catalográfica, seria uma “narrativa argentina”. Em meio a outros livros tão atraentes, como costumam ser os das livrarias portenhas, acho que foi essa indefinição que me fisgou. Com uma folheada rápida, identifiquei o prólogo de um crítico, uma apresentação do autor, o álbum de criminosos. Na página da esquerda, o retrato. Na da direita, uma ficha sucinta. O tom me pareceu jocoso, mas realista. No fim, terminada a inspeção, a dúvida persistia: continuei a me perguntar se aquilo era um registro real ou inventado. De qualquer modo, trouxe o livro para casa.

O escritor argentino José S. Álvarez, conhecido principalmente, entre outros pseudônimos, como Fray Mocho, viveu na segunda metade do séc. 19 e tem seu nome ligado à literatura policial e picaresca. Foi fundador da revista Caras y caretas, uma espécie de Pasquim argentino, que circulou no país inicialmente de 1898 a 1941. Entre novelas, contos e variedades, preparou, em 1887, por encomenda da polícia, onde trabalhava como “comissário de pesquisas”, uma espécie de catálogo criminal, no qual listou duzentos ladrões em atividade na capital. Falsários, larápios, trapaceiros, afanadores – tipos vulgares do submundo urbano, muitos deles migrantes, com profissões diversas. Além da fotografia, as fichas incluíam a descrição física, a lista de crimes e prisões, um comentário. O documento teria a princípio caráter institucional; destinava-se a auxiliar o estado na identificação e captura dos criminosos. Foi esse compêndio, publicado em dois volumes pela Imprensa do Departamento de Polícia de Buenos Aires, que serviu de fonte para o livrinho que adquiri em Palermo.

*

Toda fotografia é, em alguma medida, fantasmagórica. A imagem fotográfica sempre tem essa capacidade de incutir no observador a dúvida sobre sua própria realidade. Retratos antigos, com sua cor de abismo e desgaste, tornam ainda mais espectral essa percepção. No livro de Fray Mocho, as imagens são reproduções de fotografias, recurso que a polícia de Buenos Aires já utilizava há alguns anos. Mesmo quem não ignora esse dado, entretanto, tende a enxergar ali uma caprichada ilustração. Na passagem dos originais para o livro, a superfície e os tons, que tinham qualidade e detalhe, esmaeceram, os traços se confundiram com os de um ilustrador. É como se a certeza da fotografia tivesse sido perturbada, como se a realidade que presumidamente a impregna fosse borrada pela forma do desenho. Na galeria dos ladrões, todo olhar é lateral, esquivo – já se pressente um ar de cinema.

“Manuel Rodrígues (el Rengo). Indivíduo temível, sobretudo pelas relações cordiais que mantém com todos os ladrões e estafadores, servindo-lhes de espião, conselheiro, intermediário e representante, o que não obsta a que também entre como cúmplice de qualquer gênero de roubo ou estafa. É reputado como muito hábil em fazer chaves falsas.”[i] A crônica sobre o indivíduo, como se vê, reforça o aspecto fantasioso das fotos. O mecanismo do texto é análogo ao da imagem: o que deveria ser um resumo impessoal é ligeiramente distorcido por algum pormenor insólito ou picante. O resultado é burlesco. No conjunto, as peças acabam deslizando para uma zona de sombra, entre o oficial e o ficcional, e esse efeito torna-se mais complexo quando se descobre que não apenas criminosos em atividade compõem o catálogo.[ii] Desviando-se do que seria a sua finalidade, a Galería inclui também alguns mortos. A aventura fantasmagórica parece então parte deliberada do projeto.

*

Freud, em um ensaio bastante difundido, associou a sensação de estranheza ou inquietude – o “Unheimlich” – à retomada de alguma experiência assustadora do passado: uma vivência familiar, mas velada, que de repente sobrevém. Tento admitir a hipótese de que seria esse, talvez, o tipo de incômodo que a Galería me causou quando deparei com o livro na loja de Palermo. É apenas um exercício de imaginação. Nele reivindico, porém, que a equação entre o passado e o presente dada por Freud se organize de um modo diferente – que a direção dos tempos seja inversa. Retiro o volume da estante, examino mais uma vez as caras. Elas parecem à vontade para emergir de seu passado, e vêm não para me recordar de algum medo, mas para apontar algo que está bem aqui, à volta. Se há algo oculto que desperta a partir desse livro não é uma memória, um temor de criança, é meu próprio presente, ou a capacidade de percebê-lo – obstruído por toda a sua saturação. Um presente em que nada mais é íntimo, as janelas estão abertas, os cômodos expostos; fotografam-se os corpos, suas cicatrizes, ouvem-se todos os sussurros, pensamentos, confissões. Nele já não cabe saudade nem nostalgia, pois o que deveria tocar pela ausência, retido em algum arquivo profundo, circula sem segredos em uma rede virtual qualquer. Um tempo como esse – o nosso – parece ser capaz de esconder apenas a si mesmo. Com seu toque sinistro e ao mesmo tempo irônico, com a imprecisão de um museu de cera, o álbum de Fray Mocho parece reclamar um lugar na literatura do século 21. Suas páginas acabam servindo como um espelho torto: nele vejo sombras de livros que acabaram de ser escritos, que estão nas vitrines, e que gostaria de ler; nele vejo também, esvaziado pela fantasmagoria das telas, o leitor que estou deixando de ser.

*

Uma das características mais marcantes da literatura contemporânea, se é que esse termo ainda tem pertinência, é esconder ou borrar o seu estatuto. Não apenas esconder o artifício do fingimento, como a narrativa realista sempre buscou, mas explorar a dúvida sobre a própria condição ficcional – encenando-a, contradizendo-a. Sebald, Vila-Matas, Olga Tokarcsuk. Annie Ernaux, Sophie Calle (com Paul Auster): tomo-os como exemplo rápido, entre dezenas. Tal como a galeria de Mocho, a narrativa desses autores gera leituras de mão dupla: o documento se insinua como ficção, a ficção sugere que pode ser documento. Parece haver aqui sempre uma predisposição à ambiguidade, uma proposta de turvar a recepção. Para além do trânsito entre ficção e realidade, essa tensão alcança o amplo campo dos gêneros literários – confunde ensaio, conto, poema, romance. Quando leio os verbetes policiais concebidos por Mocho, enxergo ali pequenas cápsulas literárias, ou o embrião delas, um projeto de usar a plasticidade das formas breves para produzir literatura inclassificável. O leitor, confuso, segue pela corda bamba.

*

Um livro novo é lançado. O personagem tem o nome do autor, não é o autor. O livro é um romance. É também relato histórico, ensaio, autoficção, diário, performance. Em torno dele, as entrevistas do autor, os detalhes curiosos de sua vida. As discussões na internet, as brigas de rodapé entre os leitores. Os prêmios, a discussão sobre os prêmios. A adaptação para um filme. Como leitor, giro pela periferia de todos os livros, sugado por pedaços de livros, às vezes não penetro em nenhum. Tudo é literatura, ou se confunde com ela, tudo se integra em um livro que acaba por ser externo ao livro, como o processo de Kafka após a sua morte. O que se chama literatura corre pelas beiradas. O autor se integra à obra como seu personagem, a literatura foge do texto, volta ao texto, ao seu engano. Está onde já foi apagada. Está na foto da orelha, na mesa dos festivais. Está nos cartórios, nas certidões, nos documentos de identidade. Está antes e depois do livro, está fora do texto. Está onde é já ruína, onde será destruída. Talvez seja essa, enfim, a característica decisiva da literatura contemporânea: ameaçar a si mesma, encenar o tempo inteiro o próprio desaparecimento.

*

Em uma rápida pesquisa na internet descobre-se a variedade de nomes falsos e pseudônimos usados por José S. Álvarez, ou Fray Mocho. Nem mesmo o nome que lhe atribuíam como verdadeiro esteve isento de controvérsias. Nunca conseguiram saber com segurança a que se referia inicial “S” entre José e Álvarez. Podia ser Sixto, Serafin, Ciriaco (o “C” teria sido substituído pelo “S” por um erro burocrático). Quem se debruçou sobre a questão foi o crítico Pedro Luis Garcia[iii], que apenas recentemente, passado quase um século da morte do autor, decidiu verificar sua certidão de batismo. No registro, feito na catedral de Gaulegayachú, em 1858, encontrou o nome José Zeferino Álvarez (o “Z” se mascararia em “S”), que nunca figurara em lugar nenhum. No nome tido como verdadeiro se guardava mais um pequeno ardil.

 A literatura de Mocho, como sua identidade, é repleta de jogos de impostura, de embustes. Como jornalista, Mocho inventava notícias; foi expulso de dois periódicos por isso. Escreveu o relato de uma viagem à Terra do Fogo, sem nunca ter descido ao fim do continente. Redigia reportagens falsas para vendê-las a jornais estrangeiros – assim seus textos eram traduzidos para o exterior. Desse modo construiu seu teatro literário, que lhe valeria, quem sabe, uma ficha de fraudador. Não sei exatamente como a Galería foi recebida no século 19. É provável que arrastasse consigo violência e perversidade. Hoje, isolado pelo tempo, percebo nela algo de sinistro, algo de familiar. Creio que temos certa intimidade com esses fantasmas.  

 

[i] Galería de los ladrones de la capital, p. 55. A tradução é por minha conta.

[ii] Devo o conhecimento desse detalhe, e de outros mencionados aqui, ao texto “Galería de retratos para el Estado: identidades y escritura em ‘casos’ argentinos del siglo XIX (1887-1897), de Geraldine Rogers.

[iii] No livro Fray Mocho desconocido (Buenos Aires: Ediciones del mar de solis, 1979).

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog