Em defesa do revisor, ou A culpa é do revisor

28/03/2022

Huendel Viana*

Diego de la Cruz, La Virgen de la Misericordia con los Reyes Católicos y su familia

 

O revisor também experimenta seus quinze minutos de fama neste mundo de sociedade anônima. É quando um astuto leitor encontra um erro no livro, ou mesmo mais de um, e corre logo na página de créditos para identificar o artista.

Certos leitores se contentam com um meio-sorriso. Há os que escrevem para as casas editoriais, no intuito genuíno de aperfeiçoar as futuras reimpressões. Há ainda os inflados, que tornam público seu achado sagaz; alguns saem mesmo à caça dos revisores para lhes puxar as orelhas.

Não se separa sujeito do predicado por vírgula… não se usa crase diante de palavra masculina… não se deve pôr vírgula antes do “e” aditivo… – essas e outras muletas de oitiva surgem como máximas a fustigar o incauto revisor. Um descuido bobo, para esse leitor-raposa, é suficiente para elevar o revisor à categoria de celebridade.

Revisores do mundo, unamo-nos. Ao menos um protesto tímido que redima a classe, não obstante os protestos sejam vãos, e os sabichões infinitos. De minha parte, anoto esta emenda, a fim de que se julguem os revisores com os olhos da compreensão. Se de nada servir, fino leitor, pago-te com aquele conhecido piparote.

Antes de tudo, há que se definir quem é o revisor editorial, pois revisor de textos engloba toda uma fauna: de teses e dissertações, de revistas, de jornais (em extinção, é claro!), de sites, legendas, bulas de remédio e por aí vai. O revisor editorial talvez seja o único a desempenhar exclusivamente a sua função. Os demais, via de regra, se prestam a copidesque e até mesmo a editor.

O revisor de livros revisa um texto que já foi lido algumas vezes: pelo tradutor (se for o caso), pela equipe editorial e, por fim, pelo preparador. É o produto quase em estágio final, já diagramado e paginado, que chega às suas mãos, para a primeira ou a segunda revisão, pois é praxe submeter uma obra a pelo menos duas leituras.

Em todo esse processo são inúmeras as variáveis que podem levar um livro a sair com problemas. Uma tradução aquém do esperado ou um original mal escrito pode exigir muito do preparador, comprometendo sua tarefa; e uma preparação comprometida pode exigir mais do revisor, assim como uma primeira revisão menos atenta pode comprometer a segunda, e vice-versa.

Aqui cabe um exemplo teórico. Um livro A com cinco deslizes de revisão naturalmente desperta mais atenção do que um livro B com um único deslize. O revisor de qual livro teria mais chance de ser crucificado? Agora, e se os bastidores revelassem que o livro A teve duzentas emendas corretas feitas pelo revisor A, e o livro B não sofreu intervenção alguma do revisor B? Quem teria salvado a edição?

Há que se considerar ainda, entre outras coisas, que uma emenda correta pode não ser aceita pelo autor ou pela equipe editorial, por algum motivo; ou aceita mas não incorporada por mero descuido; ou, se incorporada, acabar gerando novo problema que passa despercebido por todos… Enfim, elidir os erros das provas é mais ou menos como tentar impedir o retorno do recalcado. Você mata um, e vem outro no lugar.

Descontando tudo isso, poderíamos dizer que sim, a culpa, ao fim e ao cabo, é do revisor, que ganhou para exterminar as pestinhas das gralhas e dormiu como um jabuti no inverno. Nessa hora surge o leitor tão atento quanto descompromissado, na sua poltrona preferida, para as vinte ou trinta páginas diárias que são lidas com prazer. E é batata, o errinho vitorioso, dando piruetas de alegria, se deixa surpreender com facilidade.

A este leitor eu gostaria de propor agora uma atividade prática. Tentar ler mais de cem páginas por dia de títulos aleatórios, por quinze ou vinte dias seguidos, sem um único dia de folga. E então, a partir do vigésimo primeiro dia, sem maneirar o ritmo, passar a anotar os erros encontrados. Caso obtenha sucesso na atividade ao completar um mês, pode se considerar um revisor profissional.

Daí então, é chegada a hora de conhecer um velho companheiro de ofício, Titivillus, que, rindo da sua cara, dirá com a palmatória erguida:

— A culpa é do revisor.

 

***

Huendel Viana é mestre em teoria literária pela USP e revisor da Companhia das Letras. Assina a coluna Aspectos da Literatura Poços-Caldense no “Jornal da Cidade” de Poços de Caldas (MG).

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