Escrever com uma tesoura

30/03/2022

Ana Cristina Cesar, presente em Poética

 

Um guarda-florestal francês tinha o curioso hábito de recortar seus livros.

Essa história é contada por Antoine Compagnon, em O trabalho da citação. O tal “homem da tesoura” cortava dos livros tudo o que lhe desagradava, deixando apenas as passagens de que ele gostava, os duzentos versos de Baudelaire ou o jantar na casa da duquesa de Guermantes, de Proust. Desta forma, ao reler os livros, ele podia encontrar apenas seus trechos preferidos e evitar tudo de desagradável que houvesse ali. Ao mesmo tempo, transformava a leitura num gesto material, uma atividade com tesoura e papel, que remetia à infância.

Para Compagnon, o ato do guarda-florestal segue a mesma lógica do leitor que anota suas passagens preferidas num caderno, ou que lê com um lápis sublinhando o que quer destacar (em detrimento do resto). De um leitor como Valéry, por exemplo, que lê rapidamente pronto para agarrar sua “presa”.

O desdobramento da questão no livro de Compagnon caminha na direção da escrita. Para ele, um dos momentos do processo de leitura é justamente o da escrita, que nada mais é do que um trabalho de reescrita de coisas prévias: de citações, de elementos descontínuos e heterogêneos, de fontes variadas, colagem e comentário. O autor é sempre também um leitor em diálogo com livros já lidos, com textos e personagens que ama, com poemas que ficaram colados na memória, com fragmentos e pedaços da cultura que constituem a sua própria subjetividade. Como Robinson perdido em sua ilha tentando reconstruir a vida com os despojos de um naufrágio. Tal é o gesto da escrita.

*

Ana Cristina Cesar foi uma das nossas maiores autoras-leitoras e escrevia totalmente imersa numa cena de leitura como a descrita acima: do recorte e da colagem, feita com a tesoura na mão, buscando frases, versos, traçando linhas, tentando capturar suas “presas”. Deixo abaixo um poema (da pasta rosa) em que ela se coloca como leitora (e tradutora) e escreve em diálogo com (e reescrevendo) um poema de Lawrence Ferlinghetti:

 

lendo Ferlinghetti não penso

                                              em Nova York no verão

mas nos cheiros de pessoas que não suspeitam

                                                            que tem cheiros

 

         e em mim de volta

tentando decifrar saudades,

                                              ficções do Humaitá

lendo Ferlinghetti não penso

                                              nos amantes cobertos pela árvore

resistindo e rasgando-se de novo

                                              penso sim

 

 

Ana Cristina diz que “não pensa” na Nova York de Ferlinghetti e que está de volta ao Rio, mas depois diz que pensa, sim. Afinal, recortou e colou (transformando) o poema dele; mas ainda carrega suas palavras, num gesto de mise en abyme: Ana C.-lendo-Ferlinghetti-lendo-Yeats... Na tradução de Nelson Ascher:

 

 

Lendo Yeats não penso
                                                             na Irlanda
mas em Nova Iorque no verão
                                                             e em mim mesmo lá de volta
    lendo o livro que achei 
                                                     no Elevado da Terceiravenida


         o Elevado
                                    com suas ventarolas suspensas
    e seus avisos de
                                           PROIBIDO CUSPIR


          o Elevado 
                                    adernando seu mundo do terceiro andar
    com sua gente do terceiro
                                                  em seus lares do terceiro
  parecendo jamais terem ouvido falar
                                                                       do térreo


         uma velha
                                  regando sua planta
     ou um gaiato de palheta
                         cravando um alfinete na gravata hortelã
como se não tivesse aonde ir
                                                         exceto à coneyislândia


    ou um cara de camiseta
                                                  balançando na cadeira
olhando o Elevado passar
                              como se o desejasse diferente
          a cada vez


             Lendo Yeats não penso
                                                             na Arcádia
e seus bosques que para Yeats estavam mortos
                                                                                          penso ao contrário
           
          em todas as faces desfeitas
                                         descendo em pontos do centro
          com seus chapéus e seus empregos
             e naquele livro perdido que achei
                                              de capa azul e miolo branco
no qual estava escrito a lápis
                                                             CAVALEIRO, SIGA ADIANTE!


                                          (Vida sem fim, São Paulo: Brasiliense, 1981)

 

 

 

Não à toa, o poema de Fernlinghetti também é um poema de autor-leitor, que evoca e recorta Yeats de suas bucólicas arcádias na Irlanda e o coloca em pleno verão urbano e nova-iorquino, num livro perdido. E recortado.

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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