O método do dragão

01/04/2022

Biblioteca da Universidade de Harvard. Ms. 1222, de 1565.

 

Ao cair da tarde, o dragão deixa a praia e penetra na mata. Pressente o cheiro do touro, que desceu o morro para beber no lago. As árvores são baixas, não chegam a bloquear a brisa que circula pela ilha. Devagar, o dragão avança, abre caminho entre as folhas. O lago é raso, a água é lamacenta, mal alcança o joelho do touro. O dragão se acerca, observa-o: sua força, sua indiferença. O touro abaixa e levanta a cabeça, nunca olha para o lado. Sorve o máximo de água que pode. O dragão se arrasta, desliza para o lago. O touro continua a se refrescar. Se o dragão resvala em sua pata, ou o golpeia com a cauda, ele reage com um coice, não se intimida. O touro é um animal soberano, sem medo. Saciado, abandona o lago e sobe de volta o morro. Não nota o rastro de sangue na terra, a mordida que o dragão deixou na sua coxa.

No dia seguinte, ao cair da tarde, o touro retorna. Anda com dificuldade, não se importa. É a hora de aliviar-se. O dragão está na praia, já deduziu a sua presença – estica e retrai a língua, pescando algum inseto, monitorando a mata. O touro se demora na água, a lama camufla a ferida. Balança o rabo com irritação, as moscas não desistem. O dragão continua quieto. Com o sol fraco, o couro do dragão se torna prateado, como a superfície do mar. Ele só abandona a praia depois que o touro desaparece.

No terceiro dia o touro desce arrastando a pata. A ferida cresceu, a carne inchou, coberta de pus e capim. O dragão encosta-se na beira do lago, ofegante. A saliva cai em placas da sua boca, a língua captura o odor de sangue. O touro parece embriagado, as patas não aguentam o peso. Ele dobra o joelho, quase vai ao chão, ergue-se de novo. Abutres fazem um círculo no céu. De vez em quando, o touro entorta a cabeça para o alto, o branco dos olhos ressalta. O veneno do dragão está completando o seu trabalho. Em questão de minutos, o touro vai tombar.

Ao cravar os dentes na presa, o dragão de Komodo sabe que executa o último ato de seu rito. Rasgar o touro, devorá-lo: esse é seu momento mais furioso e vulgar. É o momento que o iguala aos outros predadores. O veneno produzido pelo dragão, misturado às bactérias da saliva, é uma arma poderosa, letal – ajuda a explicar a longa sobrevivência da espécie, seu reinado. Talvez não seja esse, porém, o aspecto mais admirável desse invento, que vem sendo aprimorado há milhões de anos. Se a evolução ofereceu ao dragão de Komodo a certeza de matar, entregou-lhe ainda um trunfo mais precioso e discreto – a espera. Durante dias, o dragão espera. Espera e cultua o touro, reverencia o seu sangue. Sob o sol da baía, sonha. Sonha com o touro, com sua silhueta divina. Enquanto o touro agoniza, o dragão experimenta o futuro, o banquete por vir. Medita sobre o sacrifício, os aromas, o tempo. Sonha, quem sabe, com o poder das asas e do fogo. A devoração da carne é uma banalidade; a espera pode ser o princípio de sua metafísica.

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog