O circo

11/05/2022

Por Amilcar Bettega*

 

Por que o circo é triste? Teoricamente seria um lugar de alegria, de descontração, de espetáculo festivo. Mas na realidade o circo é sempre muito triste. Há uma pátina de melancolia que parece recobrir tudo o que faz parte do circo. A partir do momento em que cruzamos a cerca metálica que delimita seu espaço físico, já sentimos a presença taciturna deste sentimento de tristeza. Como algo invisível, mas pesado, que se derrama por tudo, desde as pessoas até as arquibancadas de madeira e as cadeiras de plástico ou ferro e a lona quase sempre colorida, mas cujas cores nunca brilham; da serragem à volta do picadeiro às cordas, trapézios e demais acessórios que pendem do alto como lágrimas compridas que prometem números arriscados ao final dos quais o acrobata virá até nós com seu sorriso chapado para recolher os aplausos coniventes da sua tristeza. Domadores de feras, equilibristas, trapezistas, todos parecem tocados por certa morbidez e à beira de tragédias pessoais. Os palhaços são ainda os mais tristes, claro, é sempre possível perceber por trás do enorme sorriso desenhado em suas caras pontuadas pelo indefectível nariz redondo e vermelho, uma expressão cansada, derrotada por um sentimento que contrasta com as peripécias falsamente engraçadas com as quais eles se esforçam para despertar o riso da plateia.

Por que, ao contrário do teatro, por exemplo, a proximidade e a presença física dos que fazem o espetáculo transmitem esta tristeza?

Não sei de onde vem isso. E não falo apenas dos circos pobres, destes que percorrem buracos perdidos no mapa, com suas lonas esfarrapadas e seus artistas que, já maquiados, dão conta da bilheteria e da recepção ao público, e em seguida correm ao camarim improvisado atrás de uma cortina de lona, para trocar a roupa e subir ao picadeiro enquanto as pessoas se acomodam nas arquibancadas. Também os grandes circos, luxuosos, destes que vez ou outra vemos na televisão com suas inúmeras atrações internacionais, verdadeiras fábricas de sonhos, mesmo nestes o sentimento de uma profunda tristeza está presente.

Não sei se isto é percebido por todo mundo ou se eu tendo a generalizar algo ligado a uma reminiscência particular dos circos que passavam pela minha cidade quando eu era criança.

Não sei tampouco se as crianças sentem assim, pois muitas delas parecem se divertir de verdade durante um espetáculo circense. Eu também me divertia naquela época. E a perspectiva de uma ida ao circo, quando assistia o desfile das atrações em comboio durante a sua chegada à cidade, era vivida sob enorme excitação. E a noite do espetáculo, então: só o fato de sair à noite, de não ir para a cama depois do jantar e um pouco de televisão no sofá, era já um acontecimento; e chegado lá, sob aquelas luzes e aquela música, e os números que se sucediam, os artistas, aqueles rostos vistos de tão perto, tudo aquilo trazia uma grande ebulição à minha vida rotineira e bastante previsível entre a escola, jogos de futebol e bolita e corridas de bicicleta. Havia também, sempre houve de minha parte, certa atração pelo estrangeiro, coisa que aqueles artistas saltimbancos encarnavam tão bem. Em seus traços, em suas falas e maneiras, eles traziam a experiência da vida em outros, em muitos outros lugares distantes — o que para uma criança com sede de mundo significava muita coisa.

Portanto, é óbvio que a passagem do circo pela cidade me trazia alegria. Mas ao mesmo tempo eu nunca deixei de perceber que por trás do brilho da purpurina, do sorriso, dos braços abertos ao fim da apresentação, existia, de maneira quase palpável, este sentimento meio difuso de algo que cortava a alegria, de qualquer coisa que escapava por baixo, uma coisa pungente e dolorida.

Lembrei de todas estas sensações quando, há algum tempo, fui levar a minha filha a um pequeno circo instalado num parque não muito longe da nossa casa. Pequeno mesmo, uma empresa familiar, eu diria, pois o chefe da família faz quase todos os números do espetáculo, desde o acrobata até o palhaço; sua esposa recolhe os ingressos à entrada e apresenta os números; o filho de treze anos, vestido de cowboy, faz evoluções com um laço e demonstra (pouca) habilidade como malabarista; e uma menina de uns onze, com uma malha de ballet a vestir um corpo indeciso entre a infância e a adolescência, equilibra-se sofrivelmente sobre uma corda de aço com uma sombrinha minúscula na mão direita. São todos os artistas do circo, além de uns poucos animais amestrados (pela velhice) para fazer alguma pirueta que divirta as crianças.

O público, aliás, era formado quase que só por crianças acompanhadas pelos pais ou avós, e elas se divertiam claramente, não havia nenhuma dúvida. Mas me pergunto se não percebiam também, no fundo, a melancolia daquela gente se esforçando para arrancar um sorriso e o aplauso de cada uma delas.

Ao final do espetáculo conversei com o casal — os gerentes, os donos, enfim, o circo em pessoa. Disse-lhes mais ou menos tudo isto que estou dizendo agora.

E disse-lhes ainda outras coisas, algo que me ocorreu enquanto assistia ao espetáculo.

Eles foram muito receptivos.

Hoje já faz dois meses que estou no circo, que vivo aqui. Deram-me o número do palhaço Batata, dizendo que seria mais simples no início, já que ainda não aprendi a fazer nenhum malabarismo ou acrobacia.

Tenho me esforçado, normalmente as crianças gostam. Ontem minha filha veio assistir ao espetáculo com sua mãe. Em determinado momento ela me olhou fixamente, muito séria, e não sei se reconheceu meu rosto por trás da maquiagem.

Mas ao final do número, quando a menina equilibrista puxa a cadeira e eu caio de bunda no chão, ela deu uma grande gargalhada.

 


AMILCAR BETTEGA nasceu em São Gabriel (RS), em 1964. Doutor em letras pela Universidade Sorbonne Nouvelle, também atua como tradutor. É autor de O voo da trapezista (prêmio Açorianos), Os lados do círculo (prêmio Portugal Telecom), Barreira (finalista do prêmio São Paulo) e Prosa pequena, além deste Deixe o quarto como está, lançado em 2002, vencedor do prêmio Açorianos e menção especial do prêmio Casa de las Américas, em Cuba. Em 2010 foi escritor residente do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. Seus livros e contos foram publicados em países como Portugal, Espanha, Itália, França, Estados Unidos, Luxemburgo, Suécia e Bulgária.

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