Literatura contra a desmemória política, por be rgb
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Itamar Assunção compensou a dor com a elegância, ao inventar que “um homem com uma dor é muito mais elegante”. Misteriosamente, elegância e eleição têm a mesma origem etimológica e fico pensando se a elegância não é mesmo uma escolha, ao menos diante da dor.
Tive Covid três semanas atrás e, quando estava prestes a me curar, tropecei sobre minha cachorra, a Samba, caí feio e, para não deixar que a queda atingisse a cabeça, apoiei o cotovelo. Quebrei. No dia seguinte, operei, pus placa e pinos, tendo ficado dois dias internada e isolada no hospital, em função da suspeita de Covid.
Como diz outra canção, “tudo dói”. O braço, a mão, as costas, os ombros, o outro braço, pelo esforço excessivo, além dos restos da Covid, como o fôlego menor, coriza e tosse.
Nada trágico. Só não posso dirigir e fazer alguns movimentos, além de não poder fazer exercícios, mas, de resto, tenho feito tudo, desde cozinhar até sair e trabalhar.
Mas será que estou sendo elegante?
É que a condição da dor altera o foco com que observamos o mundo, como se girássemos o botão numa máquina fotográfica, um pouco mais para lá, um pouco mais para cá e as pessoas vão ficando meio desfocadas, suas vozes um pouco distantes e os acontecimentos se neutralizam e homogeneízam como uma pasta. A dor torna as coisas um pouco opacas e confere uma sobriedade ao doente: nada é tão importante quanto parece. Observo o surgimento de um tipo de compaixão que não conhecia, adivinhando dores nos outros. Ele está muito só, ela teve Covid bem mais forte do que eu, a outra está a ponto de surtar e estão todos cansados. Nunca tinha visto tantas doenças simultâneas, por toda a parte. Doentes se localizam e se entreolham, como se dividissem um segredo – agora somos todos mais fracos. Mas, de alguma forma, mais fortes também, porque estamos aqui, dessa vez nós e mais algumas coisa. Eu e meus pinos, eu e uma experiência.
A altivez diante da dor - não pedir muita ajuda, não abusar de favores, não espernear ou gritar - sem chororô, como diz ainda outra canção, de certa forma empresta substância ao ego, que fica mais confiante e largo, mesmo se ligeiramente danificado. Ou por causa disso.
A dor física se compõe com as dores da alma e elas juntas formam um todo digno e, por que não dizer, elegante. São minhas, eu as elegi, mesmo sendo vítima delas.
Bom dia, dores, poderiam fazer o favor de me acompanhar?
Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Não está mais aqui quem falou, Írisz: as orquídeas e O que os cegos estão sonhando?, entre outros. Dá aulas de escrita em seu espaço, a Escrevedeira.
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