Fui dar em Ia?i

25/07/2022

 

Em 2016, fui à Romênia participar de um festival em Ia?i, cidade na fronteira com a Moldávia. A Romênia é o maior país dos Bálcãs, na Europa oriental, e este nome (que significa “montanhoso”) diz bastante sobre uma parte da paisagem local. Quando recebi o convite, lembrei de imediato da lendária Transilvânia, cidade medieval onde fica o castelo de Drácula. Também lembrei que o romeno é uma língua neolatina (com 24 milhões de falantes) e desejei poder identificar alguma coisa, apesar de ela ter recebido muitos aportes eslavos, o que talvez a afastasse do português definitivamente. Para completar meu limitado imaginário sobre o país, lembrei de alguns poetas, conhecidos por terem escrito sua obra em outras línguas, Tristan Tzara, Paul Celan, e, entre os contemporâneos, a Golgona Anghel (que escreve em português). Além, é claro, do Dinu Fl?mând, que conheci num festival no México e foi quem gentilmente me convidou para esta viagem.

O Dinu é um grande tradutor da obra de Fernando Pessoa. Haverá vida antes da morte? é o título de uma antologia dele que tenho em português, com tradução de Teresa Leitão. Segundo o prefácio de Lobo Antunes (amigo do poeta), Dinu repetia a frase do título, dizendo que era um questionamento coletivo feito pelos que viviam sob o regime de exclusão: “perguntávamo-nos se haveria vida antes da morte.” Ele fora exilado na França e essa condição de expatriado está evidente em seus poemas, como neste a seguir:

 

A porta

No fim das contas, o exílio tem até sentido:
“no fim das contas”...
o grito de pavor fica na língua materna, os outros
ruídos esguicham da garganta arrepiados,
como um monstro nascendo às arrecuas...

No fim das contas, já nem sofres muito
que falte o teu país nos boletins meteorológicos,
brincas com a solidão, apalpando-lhe o rosto
nos trocos que trazes na algibeira.

No fim das contas, habituas-te a ver escrito
nas portas o TIREZ,
e já nem viras a cabeça, de pavor que eles
comecem a... atirar....

(Paris, maio de 1989).

 

 

Então lá estava eu chegando a Ia?i para encontrar o Dinu Fl?mând e mais cerca de 50 poetas romenos e eslavos (russos, moldávios, ucranianos), de uma geração acima dos 60 anos, que cresceu sob os regimes totalitários e não fala inglês (nem francês, mas romeno e russo). Havia também uma dezena de chineses e outros 15 poetas do resto do mundo.

Depois de uma viagem de mais de 24 horas para chegar lá (lugar mais ao oriente em que já estive), tendo passado por duas longas escalas (em Zurique e Bucareste) e um avião de hélice entre Bucareste e Ia?i, que me encheu de pânico, cheguei tarde da noite na véspera do início do festival. Da janela do quarto do hotel, uma igreja ortodoxa de um lado, o Palácio da cultura do outro – que convivem com construções dos anos 60, baixas e imponentes, com padrões comunistas, e shoppings espelhados, já dos anos 2000. Aliás, foi num desses shoppings que comprei, numa curiosa feirinha de antiguidade montada dentro do shopping, entre a Zara e a H&M, uma carteirinha do partido comunista romeno.

No dia seguinte, acordei com os organizadores batendo na porta, já muito atrasada para a abertura do festival, e foi assim que começou meu périplo por escolas, praças, teatros, igrejas, auditórios de tamanhos diferentes: íamos numa vã em grupos de 6 poetas para leituras que duravam horas, todas as manhãs e tardes durante quase dez dias. Havia um rapaz bem jovem (ele, sim, falava inglês) que lia as traduções feitas previamente por Dinu Fl?mând para o romeno e, depois, eu mesma lia meus poemas em português -- para crianças, senhoras, jovens: todos, sem exceção, bem entediados e sem interesse aparente pela leitura. Se a Romênia para mim despertava imagens de castelos medievais rodeados por corvos e montanhas, o Brasil para eles deveria ser uma floresta tropical desembocando nas areias de Copacabana, foi o que pensei ao ouvir, num dos dias, em meio à apresentação em romeno que um dos organizadores fez de mim ao público, as palavras em inglês, “Girl from Copacabana”.

Na terceira ou quarta leitura, diante de um auditório de adolescentes numa escola, depois de o tradutor ler meu poema, comecei a falar, não o meu poema, mas “atro-cadu-capa-causti-dupli-elasti-fero-fuga-histori-loqua-lubri-mendi-multi...”  Num impulso que não sei de onde veio, saiu todo o poema “Cidade”, do Augusto de Campos. Ninguém entendia o que eu estava dizendo, faria diferença dizer um poema meu ou outro de que eu gostasse muito? Percebi que o poema gerou certa curiosidade. Então, continuei. Disse outro: “Onde quer que você esteja/ Em Marte ou Eldorado/ Abra a janela e veja...”. “Pulsar”, também do Augusto de Campos. O público tinha acordado!

Na manhã seguinte, sem ter me preparado para isso, decidi cantar. De repente lá estava cantando, “Aqui é festa, amor, e a tristeza em minha vida...”, refrão do Otto, em seguida, Sueli Costa com Cecília Meirelles: “Eu não tinha esse rosto de hoje, assim magro, assim calmo, assim triste...” Será que os poemas, músicas que sabemos de cor e amamos também são um pouco nossos? Era certo dizer aqueles versos sem avisar que não eram poemas meus? Percebi que ali não importava muito e passei aqueles dias em Ia?i dizendo poemas e músicas para uma plateia de senhoras e adolescentes romenos, que devem ter mesmo achado que o português era uma língua cantada.

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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