Good night, sweet ladies, farewell!

30/08/2022

 

Muitas vezes sinto que o trabalho de tradução não tem atalho. É artesanal, minucioso e lento. Aliás, não só não existe atalho, como às vezes tenho a sensação de precisar percorrer o mesmo caminho comprido várias vezes para tentar esgotar os inesgotáveis pontos de vista e, então, chegar à conclusão de que não há saída. Mas como não há a opção de desistir, tentamos dar uma cambalhota no mesmo lugar para achar alguma solução, afinal, o texto precisa se deslocar e atravessar, mesmo que seja apenas seguir adiante neste “caminho sem saída”.

Apesar de certo estrangulamento do que estou descrevendo, existe alguma coisa que acontece durante o processo que nos faz olhar para a linguagem de outra forma: um gesto minucioso que talvez se traduza por uma imagem que gosto de usar, a imagem de estar lendo com uma lupa na mão, tentando ver os vários ângulos de uma mesma palavra, expressão, frase. Nisso a linguagem se amplia, trazendo formas de pensar, de conversar, de existir que jamais teríamos visto se não fosse por essa lupa diante dos olhos.

Cesar Aira conta que quando deixou de traduzir sentiu um grande alívio, mas que depois de um tempo começou a sentir que tinha perdido alguma coisa e que continuava sentindo isso ao longo dos anos. “Um tradutor é instado o tempo todo aos pequenos problemas da microscopia da escrita”, diz ele. “O que mais me faz falta não são as facilidades do ofício, mas as dificuldades, essas perplexidades pontuais que despertavam meu interesse pelo comum adormecido. Agora que já não traduzo, tenho que inventá-las”.

Tais problemas da microscopia da escrita que a tradução impõe a cada frase, a cada esquina de vírgula, nos faz mergulhar numa piscina de linguagem que multiplica os mundos, as formas de acordar o automatizado, de inventar mundos a partir de pequenos detalhes. Quando eu não traduzia regularmente como faço agora, vivia atrás de problemas microscópicos desse tipo, por meio de exercícios de tradução variados, como o que resultou no livro Paris não tem centro (7letras, 2016).

Paris não tem centro foi um experimento feito durante uma residência na Cité Internationale des Arts em Paris, com uma bolsa que ganhei do Prêmio Icatu de artes. Com um livro do Jacques Roubaud em mãos (Poésie), em que ele falava sobre as relações entre poesia e cidade, decidi fazer um percurso específico por Paris caminhando até o 9º arrondissement, onde mora o poeta francês, em busca de um café no qual, segundo ele, existia uma tela da Gioconda. Eu era uma turista em Paris, nada mais esperado do que ir ver a Gioconda. Mas a Gioconda de Jacques Roubaud não era a Gioconda que está no Louvre, e, sim, uma Gioconda assinada por E. Mérou. Decidi fazer o percurso e depois descrevê-lo num poema escrito em francês: nesse meu francês de não-nativa, errante, básico, de redação escolar. Depois de pronto, pedi para uma amiga, a poeta Érica Zíngano, para traduzir o poema para o português. E pronto: ali estava diante de uma série de problemas ligados à microscopia da escrita, gerados pelo gesto de ir e vir (duplamente) entre as línguas.

No caminho para o Montmartre, eu me perdi pelas passagens de Paris (a imagem da coluna, de um lobo alado, foi tirada nesse percurso) e fui atravessando a cidade como se este caminho fosse comprido, sem saída e sem solução, fui me perdendo pelos espelhamentos daquela cidade e pelos ângulos daquela língua. Ao chegar ao café, não encontrei a tão sonhada Gioconda, mas tive uma miragem – que me ocorreu a partir de uma imagem tirada também do Jacques Roubaud. Ele conta, no prefácio à edição francesa das Galáxias, do Haroldo de Campos (na tradução de Inês Oseki-Dépré), que Haroldo de Campos teria se hospedado certa vez bem ali, perto da casa dele, e que um dia abrira a janela e lhe acenara do prédio em frente ao seu.

Hoje ao relembrar essa imagem-miragem tenho a sensação de que de fato eu vi o Haroldo nesta tarde enquanto divagava sobre as idas e vindas entre passagens, poemas, línguas e tempos. Fico debruçada sobre a imagem pensando se Haroldo teria me acenado do alto do prédio, se teria me dito “um good-bye”, como escreveu a Érica na tradução que fez do poema para o português, se teria dado um au revoir, como disse Roubaud, ou se foi simplesmente uma forte risada reconfortante, vinda do outro lado do espelho: Good night, sweet ladies, farewell!

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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