Por Carola Saavedra, autora de O manto da noite
Dizem que o autor não deve explicar seu livro. Este deveria falar por si só e qualquer acréscimo nada mais seria do que reducionismo ou, na melhor das hipóteses, mera redundância. Eu não concordo, a opinião do autor pode muito bem dar pistas de leitura, desde que não a tomemos como a única explicação possível. Mas, de qualquer forma, não é isso que pretendo fazer aqui. O que me interessa é falar sobre o processo de criação de O manto da noite, e não de possíveis significados para o que acontece na narrativa.
O manto da noite é um romance, mas é também o resultado na ficção de uma série de ideias que venho desenvolvendo nos últimos anos, muitas das quais estão no meu livro de ensaios O mundo desdobrável: a permaescrita (coexistência de vários gêneros literários), resgate dos saberes ancestrais, literatura expandida, subjetividades não humanas e, também, uma literatura que inclua outros processos de criação, metodologias muitas vezes consideradas “irracionais” ou “erradas”. Eu diria que são livros-irmãos, apesar de pertencerem a gêneros e estilos muito diferentes.
O manto da noite começou a ser escrito logo depois de O mundo desdobrável que, por sua vez, foi escrito logo após o início da pandemia, quase num fôlego só, num único movimento. Resultado de uma série de angústias e transformações. Eu tentava dar corpo, palavras, a uma realidade social e política que me parecia tão estranha, tão fugidia, e eu me perguntava a todo instante: e agora? Como viver agora? Como pôr palavras nesta vida? Como escrever ficção quando a vida parece ela mesma ficcional? Como retratar essa realidade que se recusa aos parâmetros do realismo?
O manto da noite surgiu, então, da necessidade de encontrar uma linguagem e um processo criativo que se aproximasse dessas mudanças. Um fazer literário que fosse uma aproximação aos saberes dos povos indígenas, seu olhar para a natureza, para o ser humano, para outras subjetividades. Resumindo, trata-se de um sair de si, tanto no sentido de estar fora de si, da razão costumeira (ocidentalizada), como de ir além da própria individualidade. A pergunta que eu me fazia, afinal, era como criar, como narrar para além das minhas certezas, da técnica, das “regras de etiqueta” dos manuais. Em busca dessas respostas, na escrita do livro, eu criei uma série de procedimentos, alguns dos quais eu gostaria de compartilhar aqui.
O Realismo Onírico
Quando publiquei Com armas sonolentas muita gente me perguntou se aquilo não era Realismo Mágico e eu sempre fiz questão de diferenciar o que eu tinha feito ali. Para isso, criei o termo Realismo Onírico, na realidade, a expressão já existia, mas havia sido usada apenas nas artes visuais. E achei que valia a pena transpô-la para a literatura pois era uma boa definição do que eu havia feito naquele livro, e se uma capivara falava com a personagem, não se tratava de um elemento fantástico, ou mágico, mas de num estado alterado de consciência que podia provocar essa construção. Em O manto da noite, me aprofundo e expando essa ideia. Mas o que seria o Realismo Onírico? A ideia principal, baseada nos saberes indígenas, é que não haveria uma diferença ontológica entre o mundo dos sonhos, do transe, da alucinação e o da vigília, que tudo ali teria o mesmo peso, a mesma verdade. Assim, em O manto da noite, tudo é sonho, é alucinação, e ao mesmo tempo, tudo é real: o espírito que atravessa a Cordilheira separado de seu corpo físico (que está em outro lugar), subjetividade esta que pode assumir o corpo de uma criança, de um animal e até de Caliban. Pois a realidade não está na percepção que temos dela, mas em sua estrutura simbólica.
A escrita da ausência
Segundo Lacan, o inconsciente está estruturado como uma linguagem, ou seja, ele está diretamente conectado aos idiomas que falamos, que conhecemos. Eu vinha muito interessada nas possibilidades e limites que cada língua nos dá — ainda mais porque cresci entre dois idiomas, o português e o espanhol, e depois também o alemão —, e pensava muito numa das perguntas recorrentes nestes anos de vida literária: Mas você nunca pensou em escrever em espanhol?
Minha resposta sempre foi muito definitiva, não, nunca. Minha língua (o português) é a minha pátria. Mas algo continuava reverberando, talvez a pergunta: que escritora eu teria sido se minha família não houvesse se mudado para o Brasil quando eu tinha três anos de idade? Que escritora eu teria sido se a ditadura não tivesse existido e houvéssemos permanecido no Chile? Teria sido eu nesse multiverso também uma escritora? Perguntas, claro, impossíveis de responder e que por isso mesmo eu sempre acabava guardando-as no baú das questões sem resposta. Até que um dia a leitura do livro Viver entre línguas, de Sylvia Molloy, trouxe novamente à tona essa questão, especialmente uma frase “Sempre escrevemos a partir de uma ausência: a escolha de um idioma automaticamente significa o fantasmamento do outro, mas nunca sua desaparição. Aquele outro idioma em que o escritor não pensa, diz Roa Bastos, pensa-o.” Quem era esse fantasma que me pensava, que pensava em mim, essa primeira língua que me marca ainda bebê e que é o espanhol? Mas também me perguntava: quem é aquela que vive na Alemanha, que dá aulas na universidade em alemão, o que resta dessa experiência quando escrevo literatura? Então, a partir desses questionamentos, tive a ideia.
Eu já estava escrevendo O manto da noite (em português, claro) e pensei em escrever um dos capítulos em espanhol e depois traduzi-lo para o português. O que surgiria dali, eu me perguntava, que voz seria essa? Não por acaso escolhi justamente o capítulo da infância. Essa escrita que sai de si. O resultado, após traduzir o capítulo para o português, foi uma voz na qual eu não me reconhecia. Quem era aquela criança? A resposta talvez esteja no livro, mas eu não a sei.
Animada pela experiência, decidi escrever outro capítulo, desta vez em alemão, língua que falo com fluência, mas que aprendi bem mais tarde. O resultado, após a tradução para o português, me surpreendeu de outra forma. Percebi que não era bom, ou mais especificamente, que aquilo não era literatura e mais se aproximava de um ensaio. Algo, havia algo na linguagem, algo que, por mais que eu dominasse o alemão, me escapava. E era como se eu olhasse para a misteriosa fronteira que separa um texto informativo do literário. Tive que jogar fora o capítulo inteiro. Terminei essa experiência com a curiosa revelação: escrevo em português não só porque a minha língua é a minha pátria, mas porque a língua portuguesa me salvou, me salvou da tristeza, da destruição, da loucura. Em português, essa língua que amo, foi possível criar um espaço seguro, uma casa. E talvez todos os meus livros não passem disso, de tijolos que eu vou colocando nessa casa.
A memória do que não vivemos
Mas eu queria ir além de mim, da linguagem que me marcou, queria de alguma forma alcançar o silêncio, a “origem”, minha, mas também do continente, as vozes que vieram antes e que carrego, no corpo (no DNA), como se tentasse alcançar um idioma anterior (perdido). E para isso eu precisava ouvir menos a mente e mais o corpo. Me decidi pela escrita automática, um procedimento muito usado pelo surrealistas, mas com má fama no meio literário, essa espécie de psicografia. É claro que é necessário dominar a técnica, compreender a história da literatura, dos gêneros literários. Mas isso deve ser ponto de partida e não de chegada. Decidi, então, me atrever na aventura de “não mais saber” o que estava fazendo.
Eu já havia experimentado usar papel e caneta num livro que ainda não publiquei e percebera que escrever à mão nos dá uma visão muito diferente do texto, mais ligada ao corpo, ao ritmo da respiração, uma escrita outra, à qual eu não estava acostumada. Então eu tinha dois capítulos, o pré-escrito e o pós-escrito, que deveriam acessar uma voz mítica, ancestral, fora do tempo. E me pareceu que aquele suporte era o lugar perfeito para essa experiência. Mas não só isso, eu vinha de algumas leituras de neurociência em que cientistas afirmavam (claro que não sem que outros os contradissessem), que o lado esquerdo do cérebro é o que domina o pensamento racional enquanto o direito, as questões do inconsciente. Não dessa forma binária, mas essa podia ser uma conclusão mais geral. E como o lado direito do cérebro é responsável pelo lado esquerdo do corpo, pensei no que aconteceria se eu escrevesse o capítulo com a mão esquerda. Foi o que fiz, tanto o pré quanto o pós-escrito foram redigidos com a mão esquerda em letra difícil e quase incompreensível, nos moldes da escrita automática, sem pensar no que estava fazendo, dando voz ao inconsciente — se é que é possível afirmar algo assim. O resultado foi uma narrativa estranhíssima e com um caráter mítico, como se eu sonhasse. Ao passar para o computador, fiz, claro, adaptações, mas poucas, muito poucas. O que eu queria com isso? Queria acessar uma voz que me escapa, que escapa à técnica e ao que eu estou acostumada a fazer, uma voz do inconsciente. Depois, olhando o resultado, percebi que de forma intuitiva havia tomado a melhor decisão, e que nada do que eu pudesse escrever em “estado de vigília” alcançaria o que ali foi alcançado. Não por ser “bom” ou “melhor”, mas por ser o mais exato.
Subjetividade em trânsito
Em O manto da noite a protagonista está permanentemente em trânsito, transita pela cartografia da colonização, pela história do Brasil, do continente latino-americano, mas também se move num nível individual, mesmo que de forma atípica. E aí também há um trânsito, a protagonista é e não é uma pessoa, uma única subjetividade. Ela é o próprio inconsciente, a alma separada do corpo (e permeada por ele), mas é também a alma transformada em animal, em personagem mítico, em monstro, em Caliban. Pois me interessava criar uma subjetividade que ultrapassasse a noção de indivíduo e, ao mesmo tempo, carregasse em si algo desse desejo, dessa verdade pessoal. Porque talvez seja só o que temos, só o que somos, esse desejo que não cessa e vai se metamorfoseando no tempo e no espaço. Às vezes essa personagem (sem nome) se aproxima da minha própria história, a da escritora, em outras se distancia. Mas talvez ela se distancie justamente quando parece se aproximar (as palavras correspondem aos fatos) e se aproxime quando parece se distanciar (ao cairmos no irreal, na ambiguidade). Afinal, o que é real? O que é real em um mundo em que nada existe, mas tudo é verdade?
Os sonhos
O lugar do saber para os povos originários não está na vigília, mas nos sonhos (e em outros estados alterados de consciência). É para esse mundo espiritual onde vai o xamã, seja para curar, seja para encontrar soluções para os problemas do grupo ao qual pertence. Já em nossa sociedade, os sonhos, com poucas exceções (a psicanálise, por exemplo), costumam ser desprezados, como uma espécie de alucinação sem sentido.
Quando começou a pandemia, eu, assim como muita gente, resolvi começar um sonhário, um diário de sonhos. Foi uma experiência interessante porque quanto mais eu anotava os meus sonhos ao acordar, mais eu sonhava. E a partir de algum momento, comecei a ter sonhos que faziam referência a sonhos anteriores numa espécie de intertextualidade onírica.
Resolvi usar alguns desses sonhos no livro, em especial um recorrente de um Rio de Janeiro pós-apocalíptico, em guerra civil, para onde eu retornava sem conseguir reencontrar a cidade anterior, a cidade onde cresci, como se algo houvesse se perdido. Depois, à medida que o romance avançava, comecei a sonhar com as questões que o próprio texto me colocava, e a incluir as soluções que os sonhos indicavam, numa narrativa entrelaçada por sonho e vigília. Lembro que quando terminei o livro, imediatamente deixei de sonhar com aqueles temas, deixei de habitar aquele lugar, a paisagem de neve.
Enfim, eu poderia falar sobre muitos outros aspectos do livro, sobre a ideia da permaescrita, de outras temporalidades, mas como disse no título, são só algumas anotações. E se as faço, é porque me interessa pensar outros caminhos para o romance, mas não só para o romance, cujas regras às vezes parecem tão engessadas, talvez pensar novas regras, ou melhor, não-regras para a própria escrita. “Por uma escrita fora de si” é também o desejo de um processo criativo para além dos manuais, para além do que é considerado certo ou errado pelo cânone ou pelo mercado. Uma escrita a contrapelo, que possa ir ao encontro de uma nova estética (ainda por inventar) e incorporar tudo aquilo que é considerado “menor” pela lógica da razão: os saberes ancestrais, as experiências das mulheres, os sonhos como forma de conhecimento, o tempo fora do tempo, o saber do corpo, das plantas, os estados alterados de consciência, imaginar uma escrita que possa reincorporar aquilo que ficou de fora no nosso (violento) processo civilizatório, colocado no lugar da loucura, da ignorância, da margem. O desejo de uma escrita fora de si é, assim, o desejo de incorporar ao romance uma percepção de mundo que se transforma a cada dia, e que precisa urgentemente ser repensada, expandida. Porque sinto que é ali, nessa expansão, que é possível buscar uma narrativa mais livre, mais de acordo com este mundo velho-novo em que vivemos e que ainda não sabemos como narrar. Eu não tenho respostas definitivas, mas deixo aqui algumas impressões.
Sobre O manto da noite
Prosa, diário, teatro – são esses gêneros narrativos a contornar a Cordilheira que atravessa este romance. Em uma incursão introspectiva, que perpassa a América Latina e seu passado marcado por invasões, massacres e lutas, Carola Saavedra se volta para questões individuais ao mesmo tempo em que se expande para um universo coletivo. Como escreve Julie Dorrico na orelha desta edição, a “Cordilheira, essa personagem não humana, expõe uma antiga ferida que perdura neste continente: a farsa da identidade nacional singular já combalida de tantas mentiras”.
Com este livro intenso e provocativo, Carola Saavedra mais uma vez se confirma como uma das grandes escritoras brasileiras do século XXI. “Quanto a mim, ficarei onde sempre estive, atravessando a Cordilheira.”
Sobre a autora
CAROLA SAAVEDRA é autora dos romances Toda terça (2007), Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2010), O inventário das coisas ausentes (2014) e Com armas sonolentas (2018), todos pela Companhia das Letras. Publicou também o livro de ensaios O mundo desdobrável (Relicário, 2021) e a coletânea de poemas Um quarto é muito pouco (Quelônio, 2022). Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão.