Flip 2022 | Leia um trecho de “Via Ápia”, de Geovani Martins

21/11/2022

Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Via Ápia”, novo romance de Geovani Martins, autor convidado da Flip 2022.

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Rio, 13 de novembro de 2011

O Águia parecia que tava até dentro de casa. Mó barulho sinistro, chegava a tremer o prédio todo. Acordado pelo som que invadia a casa, Biel só teve coragem de botar a cara na janela quando sentiu que o helicóptero já sobrevoava bem longe dali. Nessa hora bateu de frente com a travessa Kátia num silêncio que era até difícil de acreditar. Àquela hora, a feira devia já tá armada no caminho do Boiadeiro e a travessa cheia de gente de um lado pro outro com suas compras, preocupações e expectativas de domingo. Logo depois, deviam subir as portas dos bares, chegar os primeiros clientes. Um pouco mais tarde, a partir das nove, era pra começar o culto na igreja neopentecostal vizinha do prédio ao mesmo tempo que a missa na capela de Nossa Senhora de Aparecida, lá no fim da rua. Mas, dessa vez, Biel olhava pela janela e não via nenhum sinal de vida.

Se tivesse pelo menos maconha, podia fumar até dormir de novo. Mas nem isso. Biel se levantou pra mijar e, na saída do banheiro, aproveitou pra ir no quarto, ver se mais alguém acordou com o barulho do Águia. Tava tudo escuro ainda. Ele ficou de olho nos amigos, mas ninguém se mexia.

Voltou pra sala já na intenção do computador. Queria ver o que falavam no Facebook sobre a operação, mas logo descobriu que a internet não funcionava. Ele atualizou a página, reiniciou o modem, o computador, e nada. O jeito era ligar a televisão. Naquela hora, todos os jornais deviam repetir o mesmo assunto: a invasão da Polícia Militar na Rocinha, a maior favela da América Latina. Pra surpresa de Biel, todos os canais só mostravam a mesma tela azul. Na hora, brechou o relógio da cozinha; ainda faltavam cinco pras oito.

Não adiantava deitar no sofá, fechar os olhos, se a cabeça não parava quieta. Não se lembrava de nenhum tiro durante a noite. O silêncio em que pegaram no sono só foi interrompido pelos helicópteros que chegaram de manhã. A ausência de conflito indicava o sucesso da polícia na operação, mas não contava nem um terço da história. O que aconteceu enquanto não acontecia nada era o que tirava o sono de Biel.

Da janela via o comércio ainda fechado, mas aos poucos um morador ou outro cruzava a travessa. Eles avançavam com cuidado, no sapatinho pra reconhecer o território. Dava pra ver na cara que era tudo trabalhador, desses com carteira assinada, trabalho na pista. Biel bem queria uma correria qualquer pra fazer na rua. Pelo menos assim desceria as escadas do prédio com um destino, e não daquele jeito que ia, sem saber aonde chegar.

Foi botar o pé na Via Ápia pra ser abordado por um vendedor autorizado da net. O cara oferecia uma promoção especial de tv a cabo, mas Biel não ficou pra escutar até o fim, pediu desculpas e se adiantou. Mal conseguiu se livrar daquele, já brotou do meio do nada, uma outra vendedora autorizada, dessa vez pela Oi. Ela oferecia um pacote imperdível com televisão, internet e telefone. Na hora Biel percebeu: o gatonet não voltava tão cedo.

Na principal entrada do morro, quase não dava pra ver o morador no meio daquele monte de polícia, repórter e vendedor autorizado. Ele continuou subindo e assim que chegou na esquina onde a Via Ápia cruza com a estrada da Gávea, acendeu um cigarro. Bem na sua frente, um caveirão subia a rua sem pressa. A vontade que dava era de ver como tava lá em cima, entrar de vez no coração da favela, longe das câmeras e dos vendedores autorizados. Mas Biel não precisou nem pensar demais no assunto; era muito mais seguro descer pro largo das Flores.

Ali na calçada da floricultura, onde ficava o ponto do mototáxi, tava tudo tampado de polícia. Tinha Logan da pm, Blazer do Choque, Caveirão, a porra toda. Tinha até um ônibus da polícia com uma bandeira enorme do Bope estendida. Quando viu aquela imagem da faca na caveira, Biel pegou uma visão importante: desde que começou esse papo de upp na Rocinha, geral só conseguia pensar no dia da invasão. Ninguém falava no que podia acontecer depois.

A melhor forma era se mudar logo de uma vez. De preferência pra algum lugar na pista, onde não existia o risco de uma pacificação. Biel às vezes fica de bobeira na internet, só de olho nos apartamentos pra alugar. Flamengo, Glória, Catete. A série B da Zona Sul. Os amigos em casa acham a maior viagem, por aquele preço dava pra achar uma mansão em qualquer favela. Biel fica bolado quando ouve esse papo, porque nunca acreditou em ninguém que diz ter orgulho de morar em morro. Na sua visão, todo mundo inventa essa história pra não precisar admitir que não tem condição de viver num lugar melhor. Aí falam de como no morro se tem mais liberdade, que a infância na pista não tem graça porque playboy joga bola de gude no carpete e solta pipa no ventilador, que não dá pra divulgar um churrasco maneiro em apartamento e qualquer barulho dá caô com o síndico. Biel acha graça que nessa hora parece que ninguém se lembra da falta d’água, da vala aberta, da polícia que derruba a porta, do lixo que às vezes espera uma semana pela boa vontade da Comlurb. Queria só ver onde é que iam enfiar esse orgulho, se do nada aparece uma chance de ir morar num condomínio, com porteiro vinte e quatro horas, chuveiro a gás, elevador, coleta seletiva e a certeza de que a polícia só chega ali pra servir e proteger.

Depois de caminhar mais um pouco, Biel viu que nem a Universal do Reino de Deus teve a coragem de abrir as portas. Num domingo qualquer, era certo dali tá cheio de irmãos e irmãs, entregando jornais, pegando nome pra botar no livro de oração. Agora só tem polícia, andando de um lado pro outro. Alguns bem jovens, todos meio perdidos. Biel sentiu que já tinha visto o suficiente, era melhor voltar pra casa.

Só quando se aproximou de volta da travessa foi que ele se ligou no China fechado. Não devia ser nenhuma novidade, já que todas as outras paradas tavam na mesma condição. Mas, de alguma forma, aquela imagem parecia dizer muito mais. Biel nunca tinha visto o China fechar as portas. Uma vez, voltando do Ano-Novo em Copacabana, a lanchonete tava aberta. Carnaval, final de baile, Copa do Mundo, nada impedia que eles vendessem seus pastéis e seus refrescos. Biel imaginou o China e sua mulher em casa, sem saber quando vão poder voltar ao trabalho. Será que da área onde moram, eles também acordaram com o barulho do Águia?

Biel pegou a travessa, mas a imagem da lanchonete fechada não saía da sua cabeça, não parava de gritar nos seus ouvidos aquilo que depois todos seriam obrigados a ver também: a Rocinha como conheceram já não existia mais.

 

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