Flip 2022 | Leia um trecho de “Diorama”, de Carol Bensimon

21/11/2022

Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Diorama”, novo romance de Carol Bensimon, autora convidada da Flip 2022.

 ***

Diorama s.m. 4 MUSEOL representação de uma cena, onde objetos, esculturas, animais empalhados etc. inserem-se em um fundo pintado realisticamente. (Houaiss)

Um reverendo inglês publicou um livro em 1857 sobre as coisas que podemos encontrar na beira da praia, e então milhares de pessoas começaram a ir atrás de conchas. Búzios, vieiras, conchas espiraladas e algumas que pareciam navalhas. Limpavam aquelas casas vazias até que ficassem brilhando como cerâmica. Era uma lembrança do mar desenhada em carbonato de cálcio, que os amantes tomavam como um pedaço de sua história particular e as crianças guardavam em baús junto a bolas de gude, bilboquês e pequenos canhões de madeira. Anos depois, haveria vitrines imensas de besouros numerados em museus, a mandíbula de um tubarão, pássaros tropicais com asas abertas e olhos de vidro, a classificação obsessiva do mundo natural. Gorilas morreriam na África para serem remontados e exibidos em Nova York. Ninguém veria as costuras ou os pregos.

Em 1987, eu tinha nove anos e ainda estava bem longe de tudo isso, rodeada pelo campo vazio e mordendo a poeira da BR-473. Ia sentada entre Marco e meu pai no banco comprido da caminhonete. A janela era de Vinícius. Ele olhava para fora com o desinteresse que costumava sentir pela estrada e pelos lugares despovoados, o arco metálico dos fones de ouvido momentaneamente estragando o cabelo que ele podia jurar que era igual ao do tecladista do Depeche Mode. Para mim, aquelas viagens tinham o cheiro de cigarro Minister e o som cheio de estática das milongas e dos chamamés. Eu achava um pouco sinistro. Parecia um baile acontecendo no além. Às vezes, o locutor interrompia a sequência de músicas para dar o boletim meteorológico, um oferecimento de Jimo Cupim, qualidade comprovada. Tempo seco, céu azul.

Daquela vez, não me incomodei com o rádio. Estava distraída. Uma horas antes, atrás de um posto de gasolina, em um lugar chamado Torquato Severo, eu tinha encontrado um osso. Um pequeno fêmur, talvez. Estava só com a ponta para fora, perto de umas latas vazias de óleo, limpinho como se tivesse sido o brinquedo de um cão, e então eu cavei até minhas unhas ficarem pretas, depois entrei no banheiro e coloquei o osso e as mãos debaixo d’água. Havia um espelho sem moldura na parede e três fotos de mulheres já meio azuladas, com os peitos de fora e todo o resto. Saí de lá. Um homem de boné vermelho estava ajoelhado no chão, mexendo em uma bicicleta. Parecia mais velho que o meu pai. Parou de olhar a roda traseira e se virou para mim. “Deixa eu ver isso aí que tu tem.” Segurei o osso com mais força porque achava que ele era o dono de tudo, das bombas de gasolina, da lanchonete engordurada, das mulheres sem roupa, do pequeno fêmur. Ele sorriu. “Isso aí é zorrilho”, disse, e voltou a trabalhar na bicicleta.

Zorrilho. Quando eu chegasse em casa, ia colocar o osso em uma caixa de sapato com minhas outras relíquias, que incluíam o pedaço da carapaça de um tatu, quatro sementes de paineira, algumas pinhas e meus próprios dentes de leite. Minha mãe não gostava nada daquela coleção.

Agora eu viajava com o fêmur no colo. Faltavam treze anos para eu montar meu primeiro animal – um esquilo com um molde pronto em um porão em Kooskia, Idaho –, mas apenas oito meses para que minha família estivesse nas manchetes de todos os jornais do Rio Grande do Sul.

Raul Matzenbacher era meu pai.

Carmen Matzenbacher era minha mãe.

Ele deixou na boca por alguns segundos o Minister fumado pela metade e girou o volante, entrando em uma estrada secundária ainda mais estreita e mais esburacada que a BR-473. Dava para ouvir as espingardas balançando lá atrás. Não havia uma única casa entre o céu imenso e o verde salpicado de poeira desde Torquato Severo. Quando terminou o cigarro, meu pai jogou a bagana pela janela e ajeitou a aba do chapéu campeiro preto, que ganhara de um peão de São Gabriel durante a campanha para deputado estadual (Doutor Raul, o senhor salvou minha esposa de uma pneumonia braba, agora vai salvar o Rio Grande!). Meu pai tinha 40 anos, e o topo da cabeça já era praticamente um terreno aberto. Tentava escondê-lo com o chapéu, a boina de lã ou o boné do clube de tiro.

Na caçamba, Faísca começou a latir. Eu e Marco olhamos para trás ao mesmo tempo. Estava andando em círculos. Quando completava uma volta, parava e latia para o céu azul elétrico. Dois urubus pousaram no acostamento.

“Quieto, Faísca!”, o pai gritou.

Ele ganiu e se acomodou de novo, com o focinho tocando a lataria.

O carro começou a andar mais rápido, deixando uma nuvem de poeira vermelha que acabou por engolir os urubus.

“Tu deu comida pro cachorro?”

Vinícius não ouviu a pergunta. Na noite anterior, finalmente tinha completado sua fita com as melhores canções do rock britânico, o dedo a postos no botão do som desde que a locutora da Rádio Ipanema anunciara que ia rodar o pedido de um ouvinte – ele! –, Jesus & Mary Chain, Just like honey. Agora tentava balbuciar as palavras do refrão, que flutuavam em um mar revolto de sintetizadores e guitarras distorcidas. Marco ergueu o braço e tentou arrancar os fones de ouvido do irmão, mas Vinícius se esquivou na direção da porta, como se só faltasse mais um pequeno motivo para saltar. Tirou os fones.

“Que é isso, Marco!”

“O pai tá perguntando se tu deu comida pro Faísca.”

“Ih, esqueci.”

“A escala, meu”, disse Marco. “Era a tua vez.”

“Eu esqueci de olhar a escala.”

Virei para meu pai, esperando que ele dissesse alguma coisa. Parecia que mastigava o interior da bochecha lentamente. A bota pisou fundo no acelerador e tudo passou a chacoalhar ainda mais.

“Sabe de uma coisa que eu gosto?”, ele disse enfim, com os olhos fixos na estrada. “Gratidão canina. Entrega. Lealdade. Tu acha que o Faísca tem alguma razão para ser grato hoje?”

“Eu posso dar meu sanduíche pra ele”, respondeu Vini.

“Cachorro não tem que comer sanduíche.”

“Ué, dá pra tentar.”

“Cadê o sanduíche, Vinícius?”

Uma cerca surgiu no lado direito. Tocos de madeira e arame farpado. Vinícius se abaixou, tirou a tampa do isopor que estava entre seus pés e entregou para o pai um sanduíche enrolado em um guardanapo.

“Tu vai crescer e vai ter que fazer escolhas que nem sempre são fáceis”, disse meu pai.

Abriu a janela e jogou o sanduíche no meio da estrada.

***

A estação das milongas e dos chamamés era puro chiado agora, mas meu pai demorou a girar o botão, como se achasse que a melhor trilha sonora para o pampa fosse mesmo a dessintonia. Só desligou depois que cruzamos o pórtico enferrujado da Estância Minuano, quer dizer, da Estâ ci  Min ano, um lugar onde eu nunca tinha pisado antes.

Passamos diante da casa grande sem parar, e então meu pai pegou um caminho estreito no meio do campo. Aquela era a propriedade de um amigo dele, não sei quantos hectares e não sei quantas mil cabeças de boi herdadas havia bem pouco tempo. Segundo minha mãe, as coisas mais valiosas daquela herança eram as dívidas.

Fui falando com as vacas dentro da minha cabeça. Todo mundo estava quieto. Quando meu pai viu uma coisinha mais escura no horizonte, seguiu na direção dela. Dez minutos depois, estávamos estacionando a F-1000 debaixo de uma figueira – a tal coisinha escura –, cujos galhos quase tocavam no topo da caminhonete.

Ele tirou as duas espingardas 12 dos seus estojos de couro e soltou Faísca, que deu algumas voltas ao meu redor, depois parou completamente, atento aos ruídos do campo. Eu não tinha as orelhas de um perdigueiro, de maneira que aquilo era o mais perto que eu já havia chegado do silêncio, uma escassez de estímulos sonoros que eu procuraria anos depois nos desertos e nas florestas, dormindo em quartos de motel com luminosos fora do tempo – tevê a cabo grátis, quartos para não-fumantes – ou campings que pareciam a última parada antes do fim do mundo.

Ele vestia um colete com pequenos bolsos para os cartuchos, que brilhavam à luz do sol. Prendeu no colete uma tira de couro na qual mais tarde amararria os pescoços das perdizes.

Tinha aprendido a caçar com meu avô, Wagner Matzenbacher, antes mesmo de conseguir ler o próprio nome. Matavam duas dúzias de perdigões e penduravam as aves no rack de uma Rural Willys e tiravam fotografias para depois exibi-las aos amigos, em cidades onde não raro homens morriam com facas de churrasco enterradas nas entranhas. Estavam sorrindo nas fotos, mas de uma forma discreta e quase apologética, de acordo com a formalidade dos retratos dos anos sessenta no interior do Brasil. Nunca cheguei a conhecer esse avô. Ele morreu em um acidente de carro a caminho da serra, uns bons dez anos antes de eu nascer, mas tenho algumas fotografias dele. Há uma em especial que pego nos meus arquivos umas duas vezes por ano. Olhar para esse pedaço de papel fosco é constatar que um homem simples pode se tornar uma figura mítica caso seja colocado na pose certa. O fotógrafo tirou o retrato em um leve contra-plongée. Wagner, com a boca fechada que esconde os buracos deixados por dois dentes incisivos, está ignorando a câmera e olhando para um ponto indefinido. Não se trata, no entanto, de qualquer ponto, mas de algum lugar muito acima do mundo terreno. Wagner Matzenbacher tem seis perdizes mortas ao redor do pescoço e nove marrecões pendurados em uma corda na cintura. Com a mão direita, segura no cano da espingarda, que está apoiada no chão, parecendo assim uma dessas esculturas de mármore que precisa de um tronco, uma rocha ou outro objeto qualquer para que então não se quebre sobre seu próprio peso.

Naquele dia da caçada, em algum lugar entre São Gabriel e Bagé, meu pai foi seguindo Faísca, e os meninos logo dispararam também. O campo era um verde seco e depois ficava dourado e batia nos joelhos deles. Fiquei para trás procurando insetos. Quando olhei de novo na direção dos três, o pai estava colocando os cartuchos nas espingardas. Vinícius ajeitou uma delas no ombro, o cano apontado na direção das macegas. Eu vi quando a perdiz levantou voo e começou a traçar uma diagonal previsível, mas meu irmão nem se mexeu, então o pai mirou com pressa e deu o primeiro tiro usando a Rossi ou a Beretta. A perdiz caiu sob a luz massacrante do sol. Comecei a correr. Já tinha visto essa cena, as asas que começam a bater, depois o animal despencando do céu como se fosse um saco sujo, já tinha visto Faísca voltar com a perdiz balançando entre os dentes, mas era a primeira vez que meu irmão mais velho passava a mão naquele cabelo grande dele e ficava olhando para baixo enquanto fazia com a ponta do tênis um pequeno buraco na terra.

“Eu te trago aqui, tu deixa o cachorro com fome e não atira quando tem que atirar”, ouvi meu pai dizer.

Vinícius não respondeu.

“Toma, Marco, tu ganhou a chance de pegar tua primeira perdiz.”

Sorriu com os dentes colados e tirou a carteira de Minister do bolso.

Marco tinha treze anos. Desde os onze, atirava em garrafas de Coca-Cola posicionadas em um cepo de umbu toda vez que íamos para a estância do falecido vô Wagner e da falecida vó Ondina perto de São Gabriel, sendo eu a recolhedora oficial dos cacos de vidro. Mas ele nunca havia atirado em um animal, diferente de Vinícius, que ganhara esse direito havia dois anos. Naquele momento, Marco ainda era essencialmente um guri de cidade grande, que gostava de jogar Pitfall no Atari e vivia longos conflitos armados em um tabuleiro de War.

Apoiou a espingarda 12 no ombro estreito. Parecia imensamente grato. Quando voltássemos para a estância da nossa família, Marco desmontaria as armas pela primeira vez e usaria a escova de crina e depois a escova de algodão com um pouco de óleo lubrificante.

Meu pai olhou para mim.

“Espera a gente no carro.”

“Prefiro ficar aqui.”

“Tô te dizendo pra ir pro carro, Cecília.”

“O que eu vou fazer lá? Quero ficar com vocês.”

“Vai brincar com teu osso.”

Brincar com meu osso. Isso era o tipo de coisa que ele dizia. Caminhei na direção da caminhonete e encontrei um besouro e deixei ele ir embora. Depois abri a porta e deitei no banco com o fêmur de zorrilho sobre a barriga. Ouvi os tiros, mas não contei quantos. Continuei deitada por muito tempo e ainda estava na mesma posição quando escutei as vozes e os risos cada vez mais próximos. Foi só depois de todos entrarem no carro que virei o pescoço para olhar. Havia seis perdizes na caçamba. Eu sempre queria ver as perdizes mortas. Eram da cor da terra, meio pré-históricas, com o bico encurvado e os olhos enormes de espanto por terem chegado tão longe na linha da evolução. Agora estavam naquela pose de morte violenta, umas sobre as outras, as cabeças unidas pela faixa de couro, com traços de sangue estragando a plumagem. Mereciam mais do que isso.

“O Marco pegou três, te mete”, disse o pai, sorrindo e dando um tapinha no ombro dele.

A expressão do meu irmão do meio era óbvia, o mesmo sorriso puro e deslumbrado que esboçava ao falar de uma colega da escola chamada Clarice Nogueira. Olhei então para Vinícius. Estava com a boca entreaberta, como sempre, e passava às vezes a língua nos lábios, que ficam mesmo secos quando a gente sente muita vergonha. Olhava pela janela como se a F-1000 já estivesse de volta na estrada.

Foi a última vez que minha família saiu para caçar perdizes, porque a vida ficou mais complicada logo depois, mas não há nenhuma fotografia daquela tarde na caixa com a etiqueta 1987. A famosa espingarda Rossi, no entanto, pode ser vista em duas imagens. A primeira mostra meu pai e três amigos depois de uma caçada de banhado, quase trinta marrecões pendurados em uma kombi branca, as galochas dos homens cheias de lama, meu pai com o joelho esquerdo no chão e a espingarda em diagonal sobre o peito. A segunda é a fotografia que ilustra uma matéria de meia página no jornal Correio do Povo. Sobre uma mesa branca da Polícia Civil, estão alinhadas as armas apreendidas na estância dos Matzenbacher, três longas semanas após o assassinato do deputado João Carlos Satti.

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