Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho do conto “Lázaro”, parte de “Gótico nordestino”, livro de Cristhiano Aguiar, autor convidado da Flip 2022.
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— Sim, pode vir pegar: o corpo da sua avó acordou. — Disse, pelo telefone, o funcionário do IML.
Os protocolos sanitários impediam os parentes de esperar no próprio IML. Olga precisava ligar a cada duas horas e torcer pela confirmação. Sua mãe e seus tios e tias decidiram não ir. Todo mundo tinha algum diabetes, problema respiratório, uma operação de retirada de câncer, hipertensão, mas o motivo principal, sem dúvida, era a própria avó, tão amada pelas netas e tão distante dos seus próprios filhos.
— Tu é a neta primogênita. Tu vai pegar ela — mainha lhe falou, os olhos avermelhados.
A ordem foi recebida com contrariedade. Carregar a família assim nas costas… Ensaiou uma briga, porém estava cansada. Também teve pena da mãe. Olga até se sentiu poderosa: heroica, adulta, prestigiada.
No IML, duas aglomerações a irritaram de imediato: a imprensa e os militares. Os dois grupos estavam plantados na frente do prédio. Havia vans, carros, sirenes. Um helicóptero circundava a região. Entre os jornalistas e os soldados, como Moisés dividindo o mar Vermelho, três homens, três homens cinzentos e exaustos, a esperavam. Usavam jalecos do sus. Só um a cumprimentou, à distância.
— A senhorita é a neta de Maria Lutz?
— Sim.
O médico — depois descobriu se tratar de um médico — a olhava com veneração. Ele explicou alguns termos e protocolos, falou da coleta obrigatória de sangue da família; falou em dna, segurança nacional, falou de “momentos extraordinários”. Era um progresso: sua avó tinha sido promovida, em poucos minutos, de uma bagagem a ser retirada, de um estorvo para os funcionários do IML, de um Big Mac Zumbi, a Maria Lutz, O Milagre. Por fim, após o médico terminar seu monólogo, Olga notou os olhares desconfiados, francamente hostis, dos militares em sua direção.
Dentro do IML, Olga foi trancada com os três médicos e meia dúzia de militares em uma pequena sala abafada, mofada, cheia de cadeiras e mesas antigas. O médico perguntou sua profissão. Respondeu: jornalista. Todos os homens — Olga era a única mulher na sala — se entreolharam.
Onde trabalho? Faço assessoria de imprensa e cuido de mídias digitais, respondeu. Tenho uma pequena empresa, mentiu. “Empresa” os deixou mais relaxados. O médico pigarreou e falou de respostas imunes à covid-19. Falou de processos inflamatórios, inflamassomas, falou de células nk, macrófagos, linfócitos T e citocinas.
A sua avó faleceu provavelmente em decorrência de uma tempestade de citocinas, ele continuou, uma reação imunológica exagerada ao patógeno, ou seja, ao vírus da covid, no organismo dela. As citocinas são essas moléculas que sinalizam para várias das nossas células uma resposta imunológica para o patógeno. No entanto, às vezes a resposta é exagerada e o corpo recruta, digamos assim, “recruta” (o médico pareceu apreciar a sua própria metáfora), um batalhão excessivo de células de defesa. Células descontroladas!, disse, buscando apoio nos olhares dos seus colegas, gerando ciclos de hiperinflamação!
Enquanto ele falava, Olga se assustava com a visão de um corpo inimigo de si mesmo, de uma revolução histérica de nossas células destruindo tudo que encontrassem pelo meio do caminho. Cortar o mal na carne, literalmente. Uma dança do caos, microcósmica, encerrada somente quando o último sopro apagasse a luz.
— Vovó tá sozinha?
— Hein?
— Vovó. Ela tá sozinha?
Os homens viraram citocinas agitadas. Murmuraram. Um deles — fardado — pediu licença e saiu da sala.
— A senhorita sabe como funciona o nosso sistema imunológico?
A explicação continuou e Olga só reteve os termos “imunidade inata” e “sistema imunitário adaptativo”; foi “senhorita” o que chamou sua atenção, porque de repente Olga percebeu a idade do médico. O cansaço daquele homem, a ansiedade… Ao seu modo, ele tentava agradar, demonstrar competência. Também ele era um pai para filhas e filhos? Também era um vovô para alguma netinha? Ele se imaginava vivendo algo semelhante ao que acontecia com vovó, dormir a noite profunda e de repente voltar? Olga apreciava os solitários, praticamente os colecionava.
— … e aí a sua avó, a dona Maria, deu um salto. — Ele também gostou de ter encontrado essa palavra, até fez uma pausa dramática. — Não sabemos explicar ainda, mas já conseguimos, logo após a paciente vir a óbito, identificar marcas que podem levar a esse novo, digamos, “quadro clínico”. Supomos que haja uma correlação de fatores… genéticos, com certeza, bem como de mutação, é quase certo que se trata de uma nova cepa, agressiva, porém, porém… uma nova cepa do vírus. E talvez, essa é uma hipótese minha, haja também uma correlação com a memória celular do corpo por ter sido infectado, no passado, por outros hcovs… O salto acontece quando o sistema imunológico contribui para o reinício da atividade vital do corpo, fazendo que haja uma inesperada cadeia, parcial, parcial, de processos de regeneração celular. E falei “vir a óbito”, mas mesmo nisso não há consenso, não sabemos se os pacientes faleceram de fato, nem como, supondo a hipótese do falecimento ser correta, o corpo se reativa…
— Em quanto tempo o corpo “reativa”?
— Como…? Ah, minutos, ou no máximo poucas horas depois.
— Então vovó já foi trazida do hospital para cá, pra esse lugar, “reativada”?
Ele não respondeu. Tentou segurar as mãos de Olga. Ela o repeliu.
— O que está acontecendo com pessoas como a sua avó, esse salto, é um milagre, então…
— Doutor?
— Pois não.
— Vovó tá viva? Ela ressuscitou? Foi isso? O que aconteceu com ela?
Ele procurava as melhores palavras. Não só precisas, mas as delicadas. Olga quase pediu desculpas, porque apreciava o esforço do médico em se fazer entender. Ao mesmo tempo, cada minuto em sua presença aumentava o asco. Não só dele, mas dos seus companheiros, da sala, do iml, da… da imaginação do que seria o corpo — mas ela não era mais um corpo — da sua avó. Tudo que Olga queria era descoisificar a avó, largar as tais citocinas para trás. Começou a chorar.
— Estamos, por precaução, usando o termo “pós-vida”. Mas sim, sua avó é mais uma lázaro, sem dúvida.
O barulho do interruptor pressionado repetidas vezes a incomodou.
O médico e seus companheiros tinham conduzido Olga, com solenidade, a uma sala vazia e habitada. A pouca iluminação vinha tanto de uma única lâmpada acesa no teto — as outras se recusavam a despertar — quanto da luz externa dos postes, que atravessava o vidro opaco das janelas, quase coladas ao teto. Olga notou várias camas-mesas metálicas, com chuveirinho e suporte para os crânios. Registrou, também, o que supôs serem geladeiras. O cheiro do local era hospitalar. Mas com um desvio na assepsia — um miasma adocicado, levemente podre.
Os mortos, deitados nas camas metálicas, esperavam pelos vivos. Capas os cobriam.
A avó também esperava. Envolvida por um plástico grosso, que cobria sua cabeça e descia até o chão como um véu, ela se sentava na mesa. A luz do teto, próxima, pincelava uma aura; manchas ameboides, luminosas, se refletiam sobre o plástico retorcido.
Olga quase foi empurrada pelos homens. Eles se acotovelavam na entrada da sala e nada os tiraria dali. A neta atravessou a sala escura sozinha, ouvindo seus próprios passos ecoarem; atravessou com medo e alegria. Que se danem os leucócitos, isso tudo; a vida, quando existe vida, é sempre um final feliz, aí está vovó pra não me fazer mentir!
— Vovó, vovó…?
A neta se lembrou das brincadeiras, mas também dos sermões. Sua avó era rigorosa e tinha certezas firmes sobre o bem e o mal, o justo e o injusto. Tinha feito uma brilhante carreira como juíza federal. Dona Maria Lutz seguira a carreira do pai, também juiz. O retrato dele, pintado a óleo, há décadas na sala da casa da avó, apavorava gerações. O seu coração, menina, a sua avó lhe dizia o tempo todo, sempre fala mais forte, você é muito coração! Olga tropeçou em uma das camas — uma das poucas vazias — e derrubou algo (o som foi estridente, estilhaçante, e demorou a se dissipar). Alguns homens à porta soltaram gritinhos de susto. Maria Lutz virou o rosto; o plástico fez barulho ao se dobrar com o movimento.
Olga sentiu horror, tontura. Enfiou um punho fechado na boca, não queria a vergonha do grito. A face. Como eu vou dar conta dessa coisa? Maria Lutz vivia, era inegável.
E também estava morta?