Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Lili: novela de um luto”, de Noemi Jaffe, autora convidada da Flip 2022.
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Quando ela estava morta, eu beijei seu rosto, suas mãos, seu colo. Apertava seu pulso, abraçava seu corpo, chamava: mãe, mãe. Levantava sua mão e a deixava cair.
No dia anterior, quando ela ainda não estava morta, mas quase, eu aproximava meu ouvido do seu peito e ouvia a respiração. Era diferente.
É diferente estar quase morta de estar morta mesmo. É diferente, e só sei disso agora que ela morreu.
Se quando ela estava quase morta eu esperava que ela morresse, agora é como se eu a quisesse quase morta para sempre, só para ouvir sua respiração, a bochecha quente, os dedos da mão se mexendo mesmo que por reflexo, um ronco baixo no peito, o tremor nas pálpebras.
Nunca tinha ficado perto de uma pessoa morta e descoberta. Apenas do meu pai, mas um lençol o cobria, sobre o qual tracei com o dedo o contorno de seu nariz, gesto que repeti com a minha mãe depois que a cobriram.
Fui a única a permanecer com ela, ela morta. Fiz isso porque eu precisava, e por que precisava não sei dizer. Para estar mais com ela.
O homem do chevra kadisha me censurou. Disse que quem estava lá não era mais ela. Com que rapidez se aceita que a morte subtrai a pessoa, que a morte esvazia o que chamam de alma da pessoa.
Resisti: é o corpo da minha mãe. Era ela ou não era ela? Na hora, para mim, era. O corpo da minha mãe morta é minha mãe.
Tive a ousadia de abrir os olhos dela, e por trás das pálpebras lá estava o olho inteiro, da mesma cor, o mesmo olhar, ainda que ninguém olhasse por trás dele.
Não foi masoquismo, um prazer mórbido. Fo tão simples como uma despedida de amor ou a dificuldade da separação.
Nas últimas semanas ela adormecia com frequência enquanto conversávamos e numa dessas vezes ela acordou sobressaltada, gemendo, e eu e a Leda perguntamos o que foi?, e ela respondeu: a dor da separação.
Ela sabia que ia morrer e, apesar de sempre ter afirmado — e era verdade — não ter medo da morte, no final estava com medo, com muito medo. Ela pedia beijos sem fim, não queria largar o abraço e pedia mais e mais beijos.
No penúltimo dia antes de morrer, aproximei minha bochecha da sua boca e pedi beijos, e ela, semi-inconsciente, fez um bico com os lábios, chegando a dar um estalo. Também apertou minha mão e fez que sim e que não com a cabeça.
Por tanto tempo tive pressa pela morte dela, mas nos últimos dias eu só queria que demorasse para sempre.
Uma pessoa pode ser só o calor da mão. Isso basta para que uma mãe seja mãe e para que eu seja filha.
Ver o corpo morto e aceitar: mãe, você está morta.
Existe uma aceitação incontornável a um corpo morto. Não vou prendê-lo, me agarrar a ele, impedir que seja embrulhado, ensacado, encaixotado e transportado por alguém que não conheço — e a quem agradeço de coração — para dentro de uma geladeira. Deve ser assim. É horrível e deve ser assim.
Dever, aqui, quer dizer muitas coisas: é uma atribuição da maturidade realista, uma aceitação do ritual necessário de conformação à natureza (esse corpo vai se degradar) e à comunidade (os mortos devem ser enterrados) e uma demonstração de sanidade (não sou louca, não devo me agarrar ao corpo).
E existe ainda uma aceitação existencial, que oscila: aceito, não aceito: ela não existe mais. Minha mãe — o olhar, o sorriso, o beijo e o abraço — não existe mais.
Quando penso nela, penso no olhar, no sorriso que ela abria quando reconhecia que eu tinha chegado, no abraço e nos beijos inumeráveis, sobre os quais ela dizia que “tudo era muito pouco”.
Nos últimos meses, ela se transformou em puro carinho. Tudo nela emanava um amor infantil, que acariciava com o olhar. Era como ser olhada por um cervo filhote, ser abraçada por um leão, ser beijada por um amante que recebe a amada. Sua mão grossa e quente apertava meu tronco e minhas mãos. Falávamos pouco. Ela adormecia, e muitas vezes dormi em seu ombro, ouvindo sua respiração lenta, me sentindo aconchegada. Ela era mãe. Ela se tornou mãe. Ela se reduziu a mãe. Ela era feliz porque tinha as três filhas, e nós três éramos o mundo todo, a vida toda para ela. Nada mais importava além de poder nos ver e beijar e abraçar.
Mãe é uma palavra perfeita, com a qualidade inteira dessa condição e cujo som não só coincide, mas é o seu próprio significado.
O “m” do som do aleitamento que faz da mãe uma mãe e do filho um filho, o “ãe” que é praticamente uma extensão murmurante, reflexa, do “m”, combinação rara em português.
O que é mãe? Ser mãe. Sei que minha mãe era mãe. É mãe.
Às vezes sinto que ser mãe é ouvir essa palavra, que basta isso para transformar uma pessoa em mãe. Transformar uma pessoa em mãe, eu disse. Como se não bastasse ser uma pessoa para ser mãe.
Mãe é diferente de pessoa. Falando agora por mim — e valeria também para a minha mãe —, mãe é loucura. Mãe é a condição mais absurda, e talvez errada, que a sociedade ocidental inventou e cultivou. Amar uma mãe e amar os filhos é um desvio insustentável do amor. Um sentimento que ultrapassa a própria capacidade de compreender e até de sentir o amor.
Minha mãe morreu de amor? Não, ela morreu de dor. Seus pés gangrenaram, num processo infeccioso irremediável, e de tanto não suportar a dor dos curativos foi preciso sedá-la, o que dificultou sua alimentação e acabou levando-a à morte. Morte que aconteceria de qualquer jeito, mas que foi assim.
Quando me perguntam do que ela morreu, é difícil dizer que foi de uma infecção nos pés. As pessoas ficam sem resposta, esperam que eu lhes facilite a vida — perguntar sobre uma morte é uma convenção embaraçosa da qual todos querem se livrar facilmente e a que a filha da morta acede com educação, apesar de querer continuar a conversa. As pessoas esperam ouvir de mim câncer, pneumonia, infecção urinária (ah, sim, isso é muito comum em idosos), e quando digo “infecção nos pés” cabe a elas um olhar interrogativo, e a conversa deve prosseguir por mais alguns minutos.
Infecção nos pés, pés gangrenados. Eu nunca tinha ouvido falar que se podia morrer disso.
Durante mais de dois anos, desde que a saúde dela começou a realmente se deteriorar, ela teve algumas infecções, e a médica prognosticou a morte próxima dela algumas vezes. Nós nos preparávamos o quanto podíamos, de forma emocional e prática, mas logo descobríamos que o prognóstico não iria se realizar. Ela contrariava todas as previsões, depois de um período ruim seu quadro se estabilizava e ela melhorava, surpreendendo a todos e até a médica, que repetia nunca ter visto um caso assim.
Sobre isso cheguei a inventar uma teoria mágico-orgânica. Eu dizia que o corpo da minha mãe, por ter combatido uma infecção grave no joelho em Auschwitz, sem remédios nem cuidados, devia ter guardado a memória desse enfrentamento e por isso, quando deparava com uma infecção urinária ou pulmonar, dizia: “Só isso?”.
A Stela chegou a dizer — e eu concordei — que somente quando o corpo dela atingisse o estado de degradação e magreza a que ele tinha chegado no campo é que ela morreria. E foi o que aconteceu. As imagens dela antes da morte se parecem com as imagens de prisioneiros dos campos de concentração.
Tento não criar metáforas para uma morte por infecção nos pés, mas me espanto repetidamente com a simplicidade e pobreza dessa doença, comparadas à grandeza da vida e da história da minha mãe. (Minha mãe: essas duas palavras me atropelam.)
Fico pensando no verso “Not with a bang but with a whimper”[1] e que minha mãe, essa mulher imortal e heroica, deveria ter morrido de um jeito que abalasse a estrutura da cidade, que fizesse o céu cair e a terra tremer. Mas não, foi por causa de uma infecção lenta e insidiosa que começou com uma bolha num dedo do pé.
Pensando bem, é uma morte que combina com ela: simples, imprevisível e sem incomodar quase ninguém.
Penso também numa piada típica judaica: um homem encontra uma mulher chorando e pergunta o que houve. Meu marido morreu! Morreu? De quê? De gripe. Ah, de gripe! Ainda se tivesse sido de câncer…
E junto ao estranhamento provocado pela resposta sobre a causa de sua morte, vem sempre a pergunta ainda mais incômoda: “Quantos anos ela tinha?”, ao que eu sou obrigada a responder, já antevendo o olhar aliviado que se seguirá: “93”.
Noventa e três anos de vida simplificam tudo. “Ah, bom, então ela viveu muito, teve uma família linda… Que bom que vocês puderam aproveitá-la por tanto tempo e agora têm muitas histórias e lembranças para guardar.” Ou então: “Mesmo com essa idade a dor é sempre a mesma”.
A muita idade deve diminuir, ou ao menos atenua, a dor, é verdade. Há razão nisso. A morte de uma pessoa velha é menos chocante do que a de uma pessoa nova.
Mas recuso esse alívio, qualquer tipo de alívio.
Às vezes penso que poderia até ser o contrário e que a morte de uma pessoa muito velha deveria ser como a morte de uma montanha ou de um totem — uma perda monumental, um abalo na estrutura de uma comunidade. Dona Lili, morta, seria como o fim de uma árvore frondosa. Foi.