Flip 2022 | Leia um trecho de “O último gozo do mundo”, de Bernardo Carvalho

23/11/2022

Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “O último gozo do mundo”, de Bernardo Carvalho, autor convidado da Flip 2022.

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A última coisa que ela podia imaginar era que ele esperasse dela uma mulher leve e despreocupada. Não foi assim durante os vinte anos que passaram juntos, não seria agora, aos trinta e nove, em meio a uma quarentena, quando tudo é espera sem futuro. Ele esperou o isolamento social ser decretado para comunicar que não podia continuar ao seu lado. Foi uma surpresa saber que ele tinha descoberto a felicidade justamente enquanto ela estivera fora dando aulas. E, no entanto, não faltavam indícios. Fazia mais de um ano que o sexo entre eles se convertera num esforço que nenhum dos dois estava disposto a fazer.

Não poderia haver talvez dúvida na decisão e ambiguidade no sentimento? Não. A presença dela o oprimia, sua guerra contra a injustiça do mundo o perturbava. Vivia com ela em estado de alerta, como se tudo estivesse a ponto de explodir e ela sempre à espera da pior das crises, que agora, por ironia, pegava?a desprevenida. Longe dela ele percebeu que o problema não era dele. Não eram dele nem a tensão nem a ansiedade, ele insistiu. Longe dela compreendeu que podia ser feliz sozinho.

Pela primeira vez em vinte anos despediram?se sem contato físico, como pedia o bom senso no combate à peste. Mas bastou ele sair e fechar a porta para ela entender a redundância insensata do abandono no confinamento: a perspectiva da solidão, como se já não bastasse, justificada por uma ameaça exterior, física, mortal e invisível.

Tinha voltado do exterior para a vida ao lado de um homem que já não a queria, embora à distância tivesse declarado seu amor até o último minuto, por telefone, talvez pela inércia do hábito (estavam juntos desde o fim da adolescência) transformado em culpa e compaixão.

No curto intervalo entre a volta e a ruptura, entretanto, ela ainda teve tempo de realizar um plano antigo e assistir ao curso de uma crítica literária que, mais de uma vez em eventos dos quais também ela participara como conferencista, havia ridicularizado seus romances escritos sob pseudônimo, sem saber que estava na presença da autora. Teve tempo de assistir apenas à primeira aula. A universidade foi interditada no dia seguinte, depois de um aluno de direito e outro de engenharia, ambos com a forma grave da doença, confirmarem a presença do vírus no campus. O fechamento da universidade coincidiu com o início da quarentena.

Uma coisa inédita e inesperada, contudo, ocorreu naquela aula, enquanto ela ouvia a crítica literária achincalhando passagens de um de seus romances assinado com pseudônimo masculino. O curso, na verdade uma oficina de criação literária, propunha?se a desconstruir uma série de imposturas e engodos contemporâneos — o seu romance entre eles — e ela esperava colher, da situação improvável de sua presença como autora incógnita entre os alunos, inspiração e material para um futuro projeto picaresco. Nunca escrevera nada cômico.

Seria sua chance de provar que também tinha humor. A professora lia trechos do livro em voz alta e, supondo que tivesse sido escrito por um homem, zombava da incapacidade do autor para lidar com tudo o que não se referisse ao próprio sexo, entre olhares de cumplicidade e piscadelas lançadas à colega (e autora) impassível entre os estudantes: “Vejam só do que é capaz a imaginação masculina! O que um homem pode pensar de uma mulher! Atentem para o vocabulário. Até onde vai o ridículo da sua fantasia?!”.

Nessa hora, justamente, um rapaz ruivo que ela havia notado ao entrar e com quem vinha trocando olhares furtivos percebeu que ela não tinha o livro e convidou?a a seguir a leitura no exemplar dele. Foi a confirmação de uma correspondência para ela inconcebível àquela altura: flertar com um estudante quinze anos mais jovem, sentar ao seu lado, enquanto ele acompanhava com o indicador roído as frases que ela havia escrito quando tinha a idade dele, protegida por um pseudônimo que agora era destroçado, na leitura implacável da professora.

Foi de fato uma sensação inédita de transgressão e liberdade — ele não era seu aluno, podiam fazer o que bem entendessem, sem a sanção das regras de conduta e das hierarquias acadêmicas; ela dava aulas em outra faculdade, estava ali de ouvinte, em princípio para prestigiar a colega obcecada por seus livros sem saber que eram seus —, uma liberdade vizinha da loucura que os possuiu depois da aula, depois de ela oferecer carona ao estudante, quando caminhavam para o estacionamento por um dos bosques da universidade e se atracaram de repente, indiferentes ao risco não só de serem flagrados em público, mas de acabarem vítimas de um assalto, que também não podia ser descartado ali ao cair da noite. Sem que pudessem saber, consagravam naquele instante o fim de uma era. Ali terminava o mundo como o conheceram.

Não marcaram nada. Não disseram seus nomes. Não trocaram telefones nem e?mails. “O desconhecido é combustível da fantasia”, a professora havia pinçado, poucas horas antes, dentre os clichês do romance em suas mãos. Para a autora a graça daquele mal?entendido só confirmava a vantagem de nunca ter assumido o que publicava fora da carreira acadêmica. Ela era socióloga. Com o próprio nome, assinava textos de sociologia. Assim como os heterônimos abriam?lhe novas possibilidades romanescas em princípio incompatíveis entre si, um projeto literário picaresco por exemplo, o anonimato permitia?lhe realizar algo ainda mais improvável e inesperado, consumar uma fantasia adolescente reprimida, entregando?se a um jovem desconhecido. Ninguém podia associá?la à autora de ficção, atribuir?lhe uma identidade literária, confiná?la a um estilo, aos romances que escrevera. Da mesma forma, não era ela quem estava ali com o estudante, num estacionamento da universidade. Era a encarnação de uma fantasia adiada. A desvantagem do anonimato, naquele caso pelo menos, e sem que ela pudesse prever, era tornar o futuro impraticável. Em silêncio, os dois contavam com a aula seguinte, que nunca houve. Apanhados de surpresa pela quarentena, cada um seguiu seu caminho sem saber mais nada um do outro.

Àquela altura, ela ainda achava que fosse ou pudesse ser feliz no casamento (só dias depois o marido lhe anunciaria a decisão de abandoná?la), e por isso aceitou sem arrependimento, e até com um certo descuido, a possibilidade do sexo casual, sem futuro nem consequência, mas também podia ser que parte do que ela sentia como liberdade e transgressão já pertencesse ao fim do mundo, à intuição difusa de uma ruptura conjugal iminente.

Nos meses seguintes, depois de entender a dupla dimensão do seu isolamento, a consciência do fim de uma vida que por anos lhe parecera definitiva, agora assombrada pela progressão descontrolada da doença e dos números extraoficiais de mortos e infectados (os oficiais eram subnotificados pelo governo), descobriu que estava grávida. Mesmo se o aborto fosse legal no país, e não objeto da hipocrisia mais obscurantista, teria sido difícil e arriscado encontrar ajuda durante o auge da crise sanitária, quando os hospitais trabalhavam no limite de sua capacidade ou além dela. As regras de confinamento e os riscos de contágio mantiveram?na num estado mórbido de negação, e ela preferiu ficar longe de médicos e clínicas, à exceção de um exame colhido em casa, assim que suspeitou da gravidez, para afastar a hipótese de alguma doença contraída naquele encontro casual na universidade. Para completar, além do marido que a abandonara, perdeu a mãe e o pai nos primeiros meses da pandemia. Viu?os pela última vez quando foram

levados de ambulância por enfermeiros que mais pareciam escafandristas. Não estava preparada para perder mais ninguém. Que dizer abrir mão de uma promessa de continuidade?

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