Sobre ler e traduzir Cormac McCarthy

20/06/2023

Eu morava em Garopaba quando li pela primeira vez Suttree, de Cormac McCarthy. Tinha acabado de me mudar para aquela pequena cidade litorânea de Santa Catarina, depois de alguns anos vivendo em São Paulo, e entre os poucos pertences que levei estava uma caixa de plástico, dessas de carregar hortifrútis, contendo algumas dezenas de livros. Uma dúzia de volumes eram de autoria de McCarthy. Depois de ler A estrada, Todos os belos cavalos e Meridiano de sangue em meses anteriores, eu tinha me proposto a missão de ler toda a sua obra publicada uma vez que estivesse instalado em meu novo endereço à beira-mar. Percorri livrarias e sebos, e fiz encomendas na internet, até completar a minha coleção, incluindo coisas menos conhecidas como as peças de teatro The Stonemason e The Sunset Limited. O ano era 2008. Este foi também o ano em que comecei a fazer anotações para escrever meu romance Barba ensopada de sangue.

A escrita de McCarthy é densa e rebuscada. É famosa sua propensão a empregar uma linguagem solene e mítica, com uma cadência influenciada pelo texto da bíblia de King James (uma tradução feita em 1611 na Inglaterra) e por autores como William Faulkner e Herman Melville, mas dotada de ritmo e força imagética muito peculiares. Isso resulta em longas listas de ações ou descrições unidas por conjunções sem vírgulas, em uma profusão de vocábulos antiquados ou obscuros, em fragmentos de frase que de repente podem dar lugar a uma longa sentença que arrasta o leitor com uma sintaxe pouco familiar, mas de engrenagem impecável. McCarthy despreza sinais de pontuação em geral – há pouquíssimas vírgulas, e nenhuma aspa (mesmo nos diálogos) ou ponto-e-vírgula, e mesmo as perguntas dispensam o ponto de interrogação e costumam ser encerradas com um ponto final. Minha leitura de sua obra completa me fez mergulhar em várias edições em inglês de seus livros, e eu estaria mentindo se dissesse que entendia tudo que lia. Era bem comum, na verdade, que eu permanecesse sem captar o sentido de palavras ou frases ou mesmo de parágrafos inteiros. Mas não importava. Sempre gostei de ler o que não entendo, não importa se a dificuldade está na linguagem, nas ideias ou em ambas.

Suttree e The Crossing (o segundo volume de sua trilogia da fronteira, lançado no Brasil como A travessia) me arrastaram para seus mundos vívidos e com frequência aterradores. O texto de McCarthy parece muitas vezes impossível: não dá para entender como ele alcança seu efeito sublime empregando vocábulos ou metáforas que, na voz de qualquer outro autor, soariam pedantes ou mesmo ridículos. O importante crítico Harold Bloom afirmou que McCarthy era um dos quatro escritores mais importantes da literatura americana do século XX, ao lado de Philip Roth, Don DeLillo e Thomas Pynchon. David Foster Wallace, um dos escritores americanos mais importantes do século XXI, exímio no uso da linguagem e com grande capacidade explanativa para compartilhar o que pensava, não entendia como McCarthy conseguia “se safar” no seu emprego de um inglês antiquado e bíblico para escrever narrativas que não soavam maneiristas nem gratuitas (ele disse isso numa entrevista ao cineasta Gus van Sant em 1998). Para Wallace, McCarthy escrevia “um inglês muito longínquo daquele que usamos”. Concordo. Existe uma alquimia estranha em seu estilo. Suas histórias transcorrem em momentos históricos precisos e relativamente recentes e costumam incluir uma profusão de acontecimentos e detalhes corriqueiros, mas também parecem emanar de algum arcabouço primitivo, ou talvez eterno, de narrativas sobre o embate entre a luz e a escuridão, ou entre o nada e a existência de algo – embates sangrentos, inevitáveis, que exigem ser vistos.

Suttree, publicado em 1979, mas escrito nos vinte anos anteriores, é o mais autobiográfico livro de McCarthy e narra o dia a dia de seu protagonista, Cornelius Suttree, um pescador que vive em miséria algo voluntária à margem do rio na cidade de Knoxville, na década de 1950. A matéria desse romance de cerca de 450 páginas combina as mais prosaicas cenas – uma ida ao mercado para vender peixes, um whisky com os amigos bêbados, a vedação do casco de um esquife com alcatrão – com lancinantes ponderações sobre a morte e a violência essencial do mundo. Suttree é um homem desesperado e solitário, que rompeu com uma família abastada para procurar sentido nos recantos mais sórdidos da cidade, em que sobrevivem os desvalidos e excluídos. Mas o livro também tem uma comicidade ferina, quase picaresca. Suttree conhece um de seus parceiros ribeirinhos, o adolescente Harrogate, um “rato da cidade”, quando este último é preso por cometer atos libidinosos com as melancias de um agricultor. O arco do protagonista não tem nada de heroico e não há quase nenhum senso de resolução ao final de tantas provações e experiências: em Suttree, McCarthy parece querer nos mostrar que estar vivo é tão intenso quanto absurdo, e que uma vida dedicada a resolver ou mesmo amenizar os atritos e brutalidades do mundo, uma vida focada na busca de significados ou resoluções, seria uma vida dissonante com a natureza verdadeira das coisas.

Naquele ano de 2008, empolgando com as leituras, cheguei a me propor um outro desafio, imensamente maior do que ler toda a obra de McCarthy: decidi que iria tentar traduzir Suttree, para ver até onde chegava. Cheguei no primeiro parágrafo. Lembro que fiquei alguns dias retocando e refazendo aquelas primeiras frases, nunca inteiramente satisfeito, até que a enormidade da tarefa ficou mais nítida e desviei minha atenção e energia para outras coisas. Nos meses e anos seguintes, imaginei, rascunhei, pesquisei e finalmente escrevi meu romance Barba ensopada de sangue, que se passa em Garopaba e foi bastante inspirado pela leitura dos livros de Cormac McCarthy, em especial Suttree e A travessia. Podemos ver isso na minha tentativa de estabelecer uma continuidade entre a vida interna do personagem e o mundo externo pelo qual ele circula – uma especialidade de McCarthy. Ou no esforço para retratar os pormenores do dia a dia de um homem, sem desprezar os detalhes mais corriqueiros ou repetitivos, e ao mesmo tempo ir compondo uma narrativa que vai ganhando tons míticos, que parecem herdar algo de antigas histórias e gerar qualquer coisa que se propagará nas histórias que ainda virão. Ou nas perambulações pela cidade e pelas trilhas que se perdem numa natureza tão bela quanto hostil. Um certo estoicismo do personagem, a moralidade desapegada e altruísta, porém nociva e egoísta em muitos outros sentidos, também empresta um pouco de Cornelius Suttree.

Cormac McCarthy faleceu na última terça-feira, 13 de junho de 2023, aos 89 anos. Quando recebi a notícia por mensagem de um amigo no celular, eu estava de novo envolvido com a tradução Suttree, dessa vez para valer (o livro sairá pela Alfaguara). Daqui a alguns dias, viajarei ao Rio de Janeiro para mais uma sessão de autógrafos da edição comemorativa de 10 anos de Barba ensopada de sangue. É difícil descrever como me sinto ao contemplar esse enredamento que foi surgindo entre mim e esse autor que tanto admiro. Não me sinto um especialista em Cormac McCarthy, embora o tenha lido e relido tantas vezes. Não sei o quão pronto estou para traduzi-lo. Não saberia defender, e em muitos casos nem mesmo definir, as escolhas que vou fazendo em termos linguísticos. Mas a prosa dele, e a prosa desse livro em particular, soa no meu ouvido de uma maneira muito distinta e clara: eu a escuto em inglês quando leio e a escuto novamente em português se quiser. É uma sonoridade, uma dicção, mas também um conteúdo e uma... narrativa. Por mais que eu precise recorrer a todo instante – literalmente – a dicionários e glossários e pesquisas na web e referências a outros textos (a famosa abertura do livro, por exemplo, é provavelmente inspirada em Under Milk Wood, uma peça de Dylan Thomas), é nessa voz que escuto na imaginação que deposito minha confiança ao verter uma frase e depois outra. Tem sido um prazer enorme, e possivelmente o maior desafio da minha vida profissional.

Cormac McCarthy nos deixa uma obra singular e assombrosa, e a maioria de seus livros já foi publicada no Brasil em ótimas edições e traduções. Mais recentemente, saíram pela Alfaguara os romances O passageiro e Stella Maris, o díptico que McCarthy felizmente teve tempo de concluir antes de partir, e uma reedição dessa obra-prima que é A travessia, um dos livros mais importantes da minha vida. É dele que extraio, para concluir, essa citação: “A tarefa do narrador não é fácil, ele disse. Ele parece ter que escolher a sua história em meio a todas que são possíveis. Mas é claro que não se trata disso. Trata-se de fazer muitas histórias a partir da única que existe.”

Daniel Galera

 

Daniel Galera é autor, entre outros, dos romances Mãos de CavaloBarba ensopada de sangue Meia-noite e vinte e da obra O deus das avencas, que reúne três novelas. Publicou também o álbum em quadrinhos Cachalote, com o desenhista  Rafael Coutinho.

 

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