O caso Marielle Franco pode ajudar muito a qualificarmos o nosso debate de segurança pública, especialmente em períodos eleitorais.
É o que diz o repórter investigativo Rafael Soares, autor de Milicianos: Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele, em conversa para o blog da Companhia das Letras. Em Milicianos, Soares aborda este crime e seus desdobramentos, os quais continua acompanhando de perto no jornal Extra/Globo, onde trabalha.
Milicianos, de Rafael Soares, apresenta um impressionante panorama da complexa relação entre agentes da lei e criminalidade.
No livro, ele segue a trilha de vários policiais — como Adriano da Nóbrega, Falcon, Ronnie Lessa, Batman e Batoré — que começaram suas carreiras na polícia e tiveram uma trajetória meteórica no mundo do crime. Mais do que apenas acompanhar a história de cada um deles, o jornalista traça um impressionante panorama dessa complexa relação entre agentes da lei e criminalidade. Segundo o autor, a síntese do livro, que se relaciona diretamente com a trajetória de Ronnie Lessa é: o Estado usa o dinheiro público e sua estrutura para treinar criminosos que depois vão atentar contra o próprio Estado.
Veja abaixo o bate-papo com Rafael Soares sobre o tema, onde ele aborda pontos essenciais para compreender esse cenário atual e os desdobramentos recentes do caso Marielle Franco:
Blog da Companhia: Qual é o conceito do termo milicianos e como surgiu, já que são pessoas que deveriam combater o crime e acabam atuando em favor dele?
Rafael Soares: Na verdade, o termo milícia surge na imprensa, no próprio jornal O Globo, numa reportagem, em 2004, da Vera Araújo, que é minha colega do jornal. Foi a primeira reportagem que jogou luz sobre esse fenômeno. Milícia era a melhor palavra possível para descrever esses grupos de agentes públicos que, naquela época, começaram a dominar comunidades a pretexto de impedir o avanço do tráfico. Eu explico em Milicianos como esse modelo de domínio territorial armado, com ênfase na exploração econômica do território, se tornou mais complexo e continua ganhando mais complexidade. Do gás até toda a cadeia imobiliária das milícias, que vai da grilagem de terra até o material de construção, passando pela questão imobiliária (venda e aluguel de unidades de habitação). Mais especificamente, o título do livro faz referência ao jargão judicial usado para designar os policiais militares em serviço a partir da década de 1970. E encaixou muito bem com a ideia da obra, já que me baseei em pesquisa documental de processos judiciais antigos desses agentes públicos. Ou seja, antes de o termo milícia de popularizar, o uso do termo milicianos já era usado. Ronnie Lessa, por exemplo, já era chamado de miliciano em sentenças na justiça.
Rafael Soares, autor de Milicianos (Foto: Ana Alexandrino)
Blog da Companhia: De todos os personagens abordados em seu livro, Ronnie Lessa é o mais emblemático ou mais importante para entender o cenário das milicianos e do submundo do crime no Rio de Janeiro. Por quê? Além de seu envolvimento no caso Marielle, como ele se tornou um símbolo da criminalidade?
Rafael Soares: O Lessa é o fio condutor do livro, por vários motivos. Acho que o maior deles é que ele faz parte da minha apuração jornalística e da minha carreira nos últimos cinco anos. Eu trabalhei muito tentando entender quem era esse personagem que eu nunca conheci pessoalmente — pois quando comecei a trabalhar na imprensa, ele já estava aposentado. Já tinha ouvido muitas lendas sobre ele.
Quando eu comecei a me debruçar sobre esse personagem, tratado por colegas dele como um herói da Polícia Militar, isso não batia com as acusações de que era um matador de aluguel. Foi o que aguçou minha curiosidade, além do fato de ele ter pesquisado o meu nome ao longo desse processo. Isso veio à tona ao longo da investigação do caso Marielle Franco. Então, busquei esse rastro documental que o Lessa tinha deixado pelos tribunais do Rio, pelos batalhões da PM no Rio, isso foi o que me motivou a escrever Milicianos. Descobri que ele obteve uma carreira meteórica, astronômica mesmo na PM: foi de soldado para sargento, num período de dois anos. Lessa tinha uma carreira premiadíssima, mas repleta de ocorrências com claros indícios de crimes, de violações de direitos humanos, entre elas: tortura, execução de suspeitos e desvio de armamento. Tudo isso contribuiu para sua progressão dentro da PM. Ele sempre foi um policial estimulado e treinado para matar e quando fazia isso era parabenizado. Para mim, a trajetória de Lessa dá o argumento central do livro: o Estado usa o dinheiro público e sua estrutura para treinar criminosos que depois vão atentar contra o próprio Estado.
O Estado usa o dinheiro público e sua estrutura para treinar criminosos que depois vão atentar contra o próprio Estado.
Blog da Companhia: O caso Marielle e seus desdobramentos são fundamentais para entender este cenário, mas como ele pode contribuir para uma solução em relação aos crimes pelas milicias?
Rafael Soares: O caso Marielle pode ajudar muito a qualificarmos o nosso debate de segurança pública no Rio de Janeiro. Principalmente em período eleitoral, no qual o debate sobre o tema sempre é focado num discurso de combate ao crime, como se existisse de um lado a polícia, que seria o bem, e os bandidos, que seriam o mal. Isso, sabemos, não é verdade, já que a polícia faz parte do problema. Eu escrevi este livro justamente por causa disso. Acho que este olhar tira a polícia da equação e a coloca somente como solução. Pede-se sempre mais policiamento, mais armas, mais combate, mais operações, quando, na verdade, se queremos uma polícia melhor precisamos pensar em maneiras de transformar essa realidade dentro das corporações. O caso Marielle mostra bem isso: o Estado cometeu esse crime, foram agentes treinados que apertaram o gatilho, foi a munição do Estado que foi usada e foram anos de impunidade na delegacia de homicídios que permitiram que esses matadores agissem livremente e pudessem matar uma vereadora em pleno exercício do cargo.