Leia um trecho exclusivo de 'O crematório frio'

27/01/2025

Capa do livro O crematório frio - relatos de Auschwitz

Publicado originalmente em húngaro em 1950, O crematório frio é uma das grandes obras da literatura sobre o Holocausto. Nele, o jornalista József Debreczeni obriga o leitor a imaginar seres humanos em circunstâncias impossíveis de compreender intelectualmente, revelando uma sociedade assombrosa. Ele, que foi um dos sobreviventes, relata os doze meses de servidão pelo qual passou em uma série de campos de concentração, entre eles Auschwitz, terminando no Crematório Frio, como era chamado o hospital de Dörnhau, na Polônia, onde os prisioneiros fracos demais para trabalhar eram deixados para morrer. 

Devido às hostilidades da Guerra Fria e do antissemitismo, passaram-se mais de sete décadas até este livro ser vertido em quinze idiomas. Acabou eleito um dos cinco melhores livros de não ficção de 2024 pelo The New York Times. Em tempos sombrios de extremismo político, O crematório frio faz também as vezes de uma súplica: que o passado não volte a se repetir. 

Confira o primeiro capítulo de O crematório frio abaixo.

 

***

"O longo comboio era composto de vagões de carga baixos, com identificação alemã. Estava se preparando para parar.

 — Paramos — a palavra correu entre aqueles homens desfalecidos, apáticos. 

Pressentimos que nosso destino estava próximo. Há dois dias e meio, em Bácstopolya,* eles nos colocaram nos vagões; desde então, só tivemos duas paradas de mais de um ou dois minutos. Na primeira vez nos deram uma sopa rala, servida através de uma abertura tão pequena que por ela só passava uma mão. Na segunda, o trem desacelerou num descampado. Os ferrolhos giraram rangendo, e a voz dos soldados alemães em uniformes verdes ressoou autoritária:

 — Aussteigen! Zur seite! Los! Los!**

 

* Optou-se por não traduzir ou atualizar o nome das localidades citadas no original em húngaro a fim de manter a fidelidade à época dos eventos. [Esta e as demais notas ao longo do texto são da tradutora.] 

** “Saiam! Para o lado! Vamos! Vamos!”, em alemão

 

Tínhamos parado à beira de uma pequena floresta entapetada com flores. Onde será que estávamos: Hungria, Eslováquia, ou talvez em solo polonês? Os algozes de uniformes verdes anunciaram que podíamos fazer nossas necessidades. 

— É proibido entrar na mata! Atiraremos a qualquer movimento suspeito! 

Várias centenas de pessoas correram aos trancos e barrancos na direção do exíguo local indicado. Os olhos sonolentos das avozinhas espelhavam o terror grotesco. Seis dias antes elas ainda estavam sentadas em suas belas poltronas antigas conversando sobre o almoço de domingo. Ouviam rádio na sala das casas de campo ajardinadas e esperavam notícias dos netos que prestavam serviço militar. 

Senhoras. Ainda ontem borrifavam água-de-colônia no colo e nos braços e, ao se sentar, cuidadosamente cobriam os joelhos com a saia. 

Moças. De quinze, dezesseis, dezessete anos. Tinham aprendido a fazer mesuras. Deixaram livros escolares em casa e talvez algumas tímidas cartas de amor guardadas em caixas de bombons decoradas com fitas e rendas. Flores silvestres prensadas entre as páginas de seus diários.

Homens. Velhos e jovens. Estudantes de olhar perdido, adolescentes de cabelos desalinhados. Homens, maduros, de meia-idade, anciões. Correm, como correm. Havia dois dias que não podiam defecar. Abrem as pernas, se agacham. Apáticos, de cócoras, animalescos. A urina se acumula em poças. À sua volta, soldados vestidos com uniformes verdes novinhos em folha vigiam atentamente. Nos rostos recém-barbeados, nem um único traço se move. Não são humanos. Aqueles de cócoras, também não mais. 

Acho que em algum lugar da Europa Oriental, na orla desse bosque florido, ao longo da linha do trem, ocorreu a prodigiosa metamorfose. Foi lá que a carga humana do trem infernal lacrado com chumbo se transformou em seres animalescos. Do mesmo jeito que todos os outros; as centenas de milhares que a demência derramou de quinze países para dentro das fábricas da morte e das câmaras de gás. 

Nesse momento, eles nos puseram de quatro pela primeira vez. O trem desacelera… 

Dentro do escuro dos vagões o resto de vida se mexe. No nosso, dentre os sessenta seres humanos que foram amontoados em Topolya, 56 ainda mostram algum sinal de vida. A maioria aqui reunida é do sul e da região central de Bácska. Os cadáveres foram jogados uns sobre os outros num dos cantos do vagão. Durante o trajeto até aqui, o terror brutal, a fome, a sede e a falta de ar já mataram quatro deles. O primeiro foi o velho Mandel, o carpinteiro idoso, um bom amigo de meu pai. O velho Mandel fez os móveis de muitas moças casadouras de Bácska, sempre com solidez e honestidade. O velho carpinteiro morreu, creio eu, porque lhe tiraram os cigarros. Ao longo de sessenta anos, ele fumou cerca de cinquenta cigarros por dia. Jamais um mortal viu o velho Mandel sem um cigarro aceso no canto da boca. No campo de Topolya, junto com suas joias e dinheiro, seu estojo de tabaco também foi confiscado. Durante 24 horas, perplexo, recalcitrante, alucinado, o velho Mandel ficou parado, o olhar fixo à frente. Petrificou-se diante daquela massa disforme, um apinhado de corpos humanos a exalar vapores fétidos. Sua mão envelhecida, metamorfoseada na cor do mogno pelos sessenta anos de trabalho, às vezes se movia mecanicamente. Como se ela estivesse segurando um cigarro. O velho Mandel segurava o nada entre os dedos indicador e médio e levava o cigarro imaginário aos lábios murchos. Tal como crianças brincando de fumar, ele soprava fumaça. Fazia até bico com os lábios. Depois de Érsekújvár, a cabeça grisalha pendeu para o lado. Sua morte não foi um acontecimento. Aqui a morte não poderia mais ser um acontecimento. O dr. Bakács, de Újvidék, por um instante inclinou a cabeça atormentada sobre o colete de pele puído. Acenou, apático. O próprio dr. Bakács já estava num estado péssimo. Talvez estivesse pensando que dali a umas doze horas sua própria morte seria constatada por outro médico do trem. 

Dois enlouqueceram e, por longas horas a fio, tiveram ataques de fúria. De seus rostos lívidos, terríveis globos oculares ensanguentados saltavam para fora, espalhando saliva espumosa por toda parte; tentavam fincar as unhas no rosto e nos olhos dos que estavam por perto. Esses, junto com aqueles que foram recolhidos nos outros carros, sem nenhuma cerimônia os soldados empurraram para dentro da floresta, sem mais nem menos, quando paramos para fazer nossas necessidades. Depois de alguns minutos ouvimos o som de metralhadoras. Um deles soltou uma ampla gargalhada ruidosa e deu uma cusparada. 

Não, não nos entreolhamos. Para isso já estávamos a caminho fazia tempo demais. 

A caminho… para onde?

De certo modo, fiquei surpreso comigo mesmo. Esse é o caminho… Szabadka, Budapeste, Érsekújvár. Ocorreu-me que ainda estou vivo e nem ao menos enlouqueci. De qualquer forma, não pensava muito. Para pensar — por mais que me resguardasse —, eu também precisaria de um cigarro. Mas nem sombra de cigarros. 

Do minúsculo postigo do vagão, podem-se avistar as revoltas águas esverdeadas do lago Balaton. No 1º de maio tempestuoso e chuvoso, ondas se lançam com repugnância atrás do trem. Vejo Nagykanizsa. Sem diminuir a marcha, passamos rapidamente pela cidade, embora em Topolya o policial no 6626 tenha dito que seríamos trazidos para cá para trabalhar. 

— Não precisa ter medo — o no 6626 sussurrou secretamente —, estão indo para Kanizsa e depois farão trabalho agrícola. 

O nº 6626 era um camponês húngaro amável e sensato. Gritava para os detentos que circulavam no pátio carregando marmitas, puxando água do poço ou vagando cansados; no entanto — caso o guarda alemão não estivesse olhando —, piscava para nós com o jeito traquinas e amigável do personagem Kakuk Marci e balançava a cabeça. 

Era maio de 1944, e nessa época poucos camponeses húngaros ainda eram seduzidos pelos nazistas a ponto de não notarem que os ex-membros do governo Döme Sztójay, László Baky, László Endre, Béla Imrédy e outros carrascos haviam perdido o jogo. Alguém tem que pagar pelo sangue, as lágrimas e os chutes. 

Mas o nº 6626 se enganou nisso também. Não fomos para Kanizsa. 

Insensatamente, o espelho do rio Dráva brilha. Na outra margem está a Croácia de Ante Pavelić. Portanto, a morte. Assim, bem no meio da vida. Aceno, tal como dez dias atrás meu professor de grego clássico, o sr. Lendvai, acenou da janela da sala dos professores da escola secundária de Zombor, com vista para a rua. Foi na frente da escola que eles nos colocaram em caminhões. Estou de pé no veículo. Tenho uma mochila nas costas, minha jaqueta tem uma estrela amarela feita por mim mesmo. Tamanho padrão. Paralisados pelo medo, o sr. Lendvai, que me deu nota máxima em 1924, e os outros professores olham para o caminhão apinhado de gente. Nossos olhares se cruzam e o sr. Lendvai acena de modo quase imperceptível. Entendi. 

É o fim do mundo, o fim de tudo, é isso que significa o aceno do sr. Lendvai. 

Nenikékasz Judaiae… nenikékasz Judaiae…*

 

* “Você venceu, judeu… você venceu, judeu…”: transliteração húngara da frase “Nenikekas Galilaie”, “Você venceu, Galileu”, pronunciada pelo imperador romano Juliano, o Apóstata, no momento de sua morte.

 

No espaçoso pátio do campo de internamento de Topolya, os prisioneiros caminham. Os mais velhos andam em um ritmo lento, cabisbaixos, as mãos cruzadas atrás. Algumas pessoas se reconhecem com um meio sorriso entre lágrimas. Aqui está quase toda a equipe do outrora bem-sucedido jornal diário húngaro da Iugoslávia: editores, colegas de trabalho, antigos e novos. Encobrimos o desespero com cinismo. No rosto do gorducho e cardíaco Lajos Jávor, o eterno sorriso se congelou. 

— Ontem eles juntaram as mulheres e as crianças — diz, e seus lábios esbranquiçados se contraem de modo estranho — em Szabadka, Zombor, Újvidék, em todos os lugares. Eles pegaram todo mundo. 

O dr. János Móricz, outrora o editor-chefe, a quem uma vez, num misto de alegria e ansiedade, entreguei meu primeiro texto, enxuga seu pincenê e brada: 

— Se você é tradutor literário, traduza isso para o húngaro.

Nos olhares, a desesperança se desnuda. Dentro do sórdido edifício de pedra vermelha, sacos de palha úmidos estão espalhados pelo chão. Os perseguidos, sentados sobre pilhas de malas e mochilas, olham fixamente para o nada, diante de si. Alguns ainda têm cigarros que conseguiram esconder dos desgraçados quando chegaram. Esses os desperdiçam e fumam sem parar. Aqui ninguém se importa com o amanhã. Nem com o próximo quarto de hora. O desespero não fica examinando o calendário nem faz planejamento. O amanhã parece tão irremediavelmente nebuloso quanto o próximo milênio, quando as pessoas provavelmente andarão de saia ou túnica, não haverá campos de concentração e talvez os inocentes deixem de remir culpas. 

Amanhã… Quem se importa com o amanhã, se ontem também as mulheres foram presas? E as crianças. Mas por quê? Loucura criativa, por quê? Não temos coragem de terminar o pensamento. Lá em Topolya, somente alguns de nós já haviam ouvido falar um pouco sobre Auschwitz. As notícias sobre os horrores arrepiantes dos guetos poloneses vagamente chegaram até nós; com calafrios também lembramos da deportação de mulheres da Eslováquia, mas até ontem tudo isso ainda era distante e inconcebível. Nem agora ousamos pensar que eles estão nos arrastando para além da fronteira, milhares e milhares de inocentes. Tentamos nos consolar, a nós mesmos e uns aos outros, imaginando dificuldades técnicas. 

— Agora os nazistas têm outros problemas com que se preocupar. Onde eles conseguiriam carvão, vagões, locomotivas e pessoas para realizar uma migração em massa dessas proporções?

Foi Béla Maurer, advogado e jornalista, quem fez esse comentário num tom que não tolerava contestação. De fato, observando suas feições, as notícias pareciam encorajadoras. O pensamento do trabalhador e do camponês húngaros ainda não havia sido obscurecido por completo pela loucura marrom.* Instintivamente ele sentia que as coisas iam de mal a pior. No boteco, os mais ousados falavam sobre os horrores que aconteciam. Ironizavam os pomposos relatórios de guerra, a linguagem forçada e floreada de “movimentos militares separatistas”, “retiradas flexíveis”, “reagrupamentos” e “novos posicionamentos”. Em solo húngaro, os empolados alemães já eram vistos com olhares desconfiados. O povo já enxergava o que seus dirigentes não queriam ver: o batalhão de insurgentes da Wehrmacht,** cansado, abatido e com a barba por fazer, os broncos e impassíveis homens dos destacamentos da ss,*** cujos olhos cruéis já mostravam olheiras profundas sob os capacetes puxados sobre a testa, os moleques folgados de quinze ou dezesseis anos escondidos dentro de camisas de lona; esse era o exército com o qual os “aliados” alemães ocuparam o país. Viram que teriam que tomar o caminho de volta, mas sabiam que não existia caminho de volta. Ruas vazias, persianas fechadas, rostos desconfiados, sombrios. O silêncio da espera inevitável pelo horror espreitava também nas aldeias de Bácska. A calmaria antes da tempestade, como que pisando em ovos, estava em alerta máximo.

 

* Referência ao uniforme marrom do esquadrão de proteção nazista. 

** Nome das Forças Armadas da Alemanha nazista, de 1935 até 1945. 

*** Abreviatura de Schutzstaffel [esquadrão de proteção], organização paramilitar ligada ao Partido Nazista e a Adolf Hitler e que administrava os campos de concentração e de extermínio.

 

Quando começamos a jornada de quatro quilômetros desde o pátio do campo em Topolya até a estação de trem, os velhos com mochilas, as crianças pequenas e as senhoras cansadas ainda não sabiam sobre Auschwitz. Mas os policiais húngaros empunhando baionetas, que tinham sido posicionados pelos alemães a intervalos de cinquenta metros em ambos os lados da rodovia, sim. 

Nos olhos dos policiais ardia o ódio. Aquele ódio cuidadosamente plantado, cuja motivação não é questionada pelo “agente” treinado para seguir a palavra de comando. Mesmo assim, havia aqueles cuja humanidade modesta, camponesa, foi despertada pela experiência assombrosa. A boca de uma ou outra estátua armada se moveu para dizer: 

— Deus abençoe vocês! 

A multidão, meio desmaiada, cambaleante, nem mesmo percebe, mas a sinistra frase de despedida ainda ecoa em minha mente quando, de longe, vejo nosso comboio na estação ferroviária, em uma das plataformas. Os carros sinalizados como dr (Deutsche Reichsbahn, ou Ferrovia Nacional Alemã) falam um alemão mais alemão do que os soldados alemães do campo que os acompanham. Então, de fato, estamos sendo deportados. No melhor dos casos: câmara de gás. Na pior das hipóteses: trabalho insano, até a exaustão. 

No entanto, como sentimos pena de nossos oito parceiros que se suicidaram quando veio a ordem para partir, e ficou claro que o campo húngaro nada mais era do que um local de recolhimento temporário. Enquanto podíamos viver acreditando que eles iriam nos manter ali ou que estavam nos direcionando para outro lugar dentro da Hungria, a coisa toda ainda era razoavelmente tolerável. Topolya, Bácska! Essa dualidade conceitual conhecida, esse pensamento de alguma forma mantinha o terror da completa desesperança à distância. Topolya ainda era um pedaço de nosso lar. 

Diante de nossos olhares esperançosos, a dúbia, mas ainda não completamente afastada, segurança pessoal garantida pelas poucas sílabas do brilhante símbolo do “reino húngaro” no cinto dos policiais húngaros. Nós nos agarrávamos à paisagem familiar, na expectativa de que a lei ainda nos protegesse. O nazista húngaro pode ser tão cruel quanto o alemão. Pode até ser igualmente determinado, mas sua engenhosidade, sentíamos, ainda não havia evoluído para o sadismo das câmaras de gás.

"

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