Foram os livros que levaram a escritora Heloisa Pires Lima a conhecer mais as infâncias negras – nas beiradas de rios, nas periferias das cidades, nas densas florestas. Mas foi também ela que contribuiu com a elaboração da identidade das crianças e sua negritude nos livros. “A infância negra é muito diversa”, conta a autora de Histórias da Preta, obra lançada em 1998, quando a temática afro-brasileira não estava na pauta nem era lei.
O livro abriu um importante precedente ao contar a história da menina Preta, “uma filósofa em seus porquês”, personagem que amplia a visão do leitor a partir de seus questionamentos diante do mundo. O resultado tem origem num desafio proposto em conversas com a editora Lilia Schwarcz e, depois, com a escritora Heloisa Prieto.
“A Preta expande circunstâncias ao procurar responder afinal o que faz uma menina negra ser diferente de todas as outras meninas? O fim da história, que não acaba, desloca o problema da cor. São as histórias da Preta, dinâmicas em ângulos e conteúdos, o que constrói sua singularidade.” Como bem pontua a autora, também educadora e antropóloga, ela criou o imaginário da Preta a partir da sensibilidade e das lembranças da menina negra que foi.
Ela questiona a uniformização de repertórios devido à falta de diversidade, da literatura ao audiovisual. “A biblioteca, assim como a brinquedoteca ou a videoteca, ajudou a reproduzir visões muito apequenadas tanto para a criança negra quanto para todas as outras perceberem a origem africana em sua pluralidade”, afirma. É urgente “escancarar a janela para a diversidade de padrões de humanidade nesse espelho”.
No bate-papo a seguir, Heloisa reúne sua farta bagagem de estudos na área e dá uma aula sobre os desafios da representação da criança negra.
Como você descreveria hoje, a partir de suas vivências e pesquisas, o universo da infância para a criança negra? O que é que ela está em contato? Ela se identifica com as referências que a cerca?
Meus livros me levam ora para alguma roda de histórias à beira da praia, ora em escolas urbanoides, comunidades que eram favelas, à beira de um rio dentro de uma ilha, no meio de uma floresta. A infância negra é muito diversa. Mas o que há em comum para todas elas? Por exemplo, uma área quilombola, relativamente isolada, garante aos seus infantes certa preservação do brincar local, que é como qualquer criança vai se localizando no mundo. Mas a chegada de uma estrada, e com ela a TV, traz novos elementos para elas elaborarem suas respostas. Como nossa telinha não é tão diversa assim, elas acabam englobadas em certa uniformização de repertórios. Da mesma forma aqueles que habitam as bibliotecas que as alcançam. Historicamente, de geração em geração, foram postas à disposição dos infantes referências quase que absolutamente de origem europeia. A procedência africana, janela para o leitor negro-afrodescendente, esteve presente, porém muito restrita em associações. Isso quer dizer que o tema das representações, aliado ao da representatividade, poderia ser um bom critério para perceber a infância negra. A biblioteca brasileira, assim como a brinquedoteca ou a videoteca, ajudou a reproduzir visões muito apequenadas tanto para a criança negra quanto para todas as outras perceberem a origem africana em sua pluralidade.
Como educadora e também a partir de suas visitas às escolas como autora, qual a realidade das alunas e dos alunos negros hoje nas escolas quanto à representatividade, envolvimento com os colegas, brincadeiras etc.?
Bem, por muito tempo o convite de escolas vinha das particulares e em grandes centros. Na última década, cresceu consideravelmente a solicitação formal para encontros com leitores de públicas. As particulares quase não tinham alunos ou educadores negros. Talvez por isso eu compreendesse o livro como um grande mediador de assuntos e de sensibilidades. Minha formação em antropologia me levou a circunscrever as representações dos modelos de humanidade que circulam nas bibliotecas pueris, o que se tornou um interesse definitivo. Coleciono exemplares para recolher na abordagem os argumentos culturais que a sustentam. Isso pra dizer que não basta a escola supor o incentivo à leitura. A ausência da origem africana não é neutra. Uma presença estereotipada também não. Portanto, a biblioteca precisa escancarar a janela para a diversidade de padrões de humanidade nesse espelho. Os enredos ajudam a formar ideias acerca dos assuntos. Por isso, como escritora, esse foi o mote que ganhou meu coração. Uma obra que parte de universos negros é para todos os leitores. Então, quando uma menina oriental ama uma personagem como a Preta, ocorre ali, uma aliança para o futuro. Agora, imagine o quanto uma companhia assim é fundamental para a gurizada preta! Fornece elementos para a fantasia enfrentar realidades. Por isso, o ponto de vista existencial de escritores negro-afrodescendentes em toda a sua complexidade é imprescindível para as prateleiras das infâncias negras e para todas as demais. O conjunto, repertório e autoria, conversa com demandas da sociedade brasileira. O movimento das crespas, que valoriza os cabelos e penteados afros, vem se transformando numa infinidade de títulos de sucesso a circularem por aí. Na escola particular ou na escola pública, a mediação de uma obra é muito valiosa no trabalho de produzir conhecimento acerca do convívio na diversidade. Ele inicia notando quem está presente nesse lugar da ficção literária e se há equidade nessa disposição.
Na sua experiência de já ter tido uma escola em São Paulo, quais pontos você fez questão de ter trabalhado diferente na época?
Nos idos dos anos 1980, inventar uma escola ia muito além de um reles empreendimento comercial. A intenção era alimentada pelo sonho de um mundo melhor, mais saudável e justo socialmente. Havia muita lucidez quanto à responsabilidade de formar uma geração. Por isso a atenção aos preconceitos para serem desmanchados naquele dia a dia. Quiçá o racismo reforçado pelos ambientes educativos. A teoria eu já vinha produzindo em textos para educadores. Mas como trabalhar dilemas dessa ordem com as crianças? Era uma escola de classe média, na Vila Madalena, em São Paulo. Na época chamavam de pré-escola e foi concebida como cooperativa, berçário e continuou crescendo junto com a idade dos alunos.
Como era o currículo da escola?
O currículo era sui generis para os dias de hoje. Lá, onde não entrava brinquedo de plástico, a biblioteca era especial, resultado de garimpo requintado com livros do mundo todo. O trabalho com a musicalidade não deixava escapar a africana sem esquecer as demais origens continentais em suas variedades. O contato com a percussão disponibilizava pequenos atabaques para as atividades sob o assoalho de madeira. Capoeira, ou melhor, os movimentos da capoeira faziam parte da rotina entrelaçada com shantalas e a lambuzeira no barro para os tijolos da casinha, de verdade, construída por eles para brincar. A motivação de incluir repertórios afros iniciava no nome Ibeji Casa Escola. A palavra é africana advinda da cultura iorubá encontrada ao noroeste africano, Nigéria, Benin, Togo. Durante o deslocamento escravista muitos vieram para o Brasil trazendo o panteão dos orixás que recriou o candomblé no Brasil. Lá, Ibeji é o título dado aos nascimentos gêmeos, manifestação da multiplicidade encontrada na natureza e como divindade expande todas as fortunas. Quando o iorubá viu dois santos católicos, São Cosme e São Damião, iguaizinhos, reconheceu neles seus Ibejis. A tradição iorubá se encontrou com a ibérica e acabou associada. No dia deles, fazíamos a festa anual com muitos doces e regada à caruru baiano no coração da metrópole paulista. Enfim, a escola trabalhava a dimensão universal de perceber o mundo e, em especial, a particularidade negra apresentada com orgulho e enriquecida em sua densidade. Podia ser por meio de uma cantiga, uma música, uma dança, um jogo lógico, uma comida, uma planta, um animalzinho da bichoteca...
Quais outras experiências destaca como educadora?
Eu também atuei como arte-educadora no período em que se transformou a Secretaria do Menor em Secretaria da Criança. Para essa infância, eu inventei uma editora fictícia numa proposta mais sistemática e facilitadora de conhecer suas realidades. Ali, as crianças e os adolescentes escreviam, desenhavam, liam ou recontavam ou escutavam histórias de suas vidas. Veja que esse aspecto literário e editorial sempre redimensionou meus caminhos. Se não tinha livros próximos de suas realidades, então, bora criá-los. Eu organizava visitas em editoras para eles conhecerem o processo e dele se apropriarem. Conheci ilustradores extraordinários. Muitos, infelizmente, não passavam dos 17 anos de idade. Lembranças muito dolorosas da impotência inquietante.
Outro ponto que você também menciona no livro Histórias da Preta é a importância também da criança negra se ver representada em enredos de amor ou aventura, histórias de pessoas bem-sucedidas. Como a presença do negro nas histórias de ficção, principalmente na literatura infantojuvenil, contribui para a formação da identidade da criança negra?
O problema não está na representação mirrada, fechada em poucos modelos para a existência negra do infante se mirar. Ela não seria um problema se houvesse outros tantos contrapontos. A Preta, com suas histórias, vai ampliando o escopo de visão do leitor, principalmente, em chaves emocionais vinculadas à protagonista feminina. Ela é uma filósofa em seus porquês, tem um pai que tem uma biblioteca, uma vó sabida, uma madrinha carinhosa, amigos, vai à escola etc. Além dessas dimensões todas, ela não deixa de projetar na paisagem os griôs africanos, guardiões da memória que as sociedades do noroeste africano inventaram. Ou levar a imaginar crianças libertando outras do mercado Valongo, no Rio de Janeiro. Com sua pele negra, nariz chato, lábios grossos, cabelo encrespado, no traço de Laurabeatriz, ela toma o centro da cena, ou melhor, da capa. O resultado foi um desafio para o ano de 1998, proposto em conversas com Lilia Schwarcz e, depois, com Heloisa Prieto. A Preta expande circunstâncias ao procurar responder afinal o que faz uma menina negra ser diferente de todas as outras meninas? O fim da história, que não acaba, desloca o problema da cor. São as histórias da Preta, dinâmicas em ângulos e conteúdos, o que constrói sua singularidade.
O que deve ser mudado na realidade da criança negra? Quais elementos você considera essenciais para a formação de uma infância em que sejam reconhecidas e valorizadas as ascendências culturais de uma criança?
As referências histórica e cultural africana ou afro-brasileira podem entrar pelo coração. O fabuloso é próprio do literário. Mas isso não impede dele apontar questões da realidade. Porém, sem produzir hierarquias. Entrar em contato com um repertório, respeitar a densidade cultural ou humana não expulsa a arquitetura lúdica para contar aquela história. Estou apenas produzindo imaginários com a sensibilidade à flor da pele da menina negra que eu fui. Geralmente, escolho tramas que mostrem o instante de altivez. É para equilibrar o excesso de subalternidade como padrão disponibilizado.
Em suas pesquisas feitas durante sua vida acadêmica, como você avalia a quantidade de conteúdos que encontrou sobre literatura infantojuvenil aliada à cultura negra?
De alguma forma, os investigadores desse vínculo me procuram, me convidam para bancas, sendo uma forma de acompanhar o que está sendo produzido. Mas é muito pouco ainda – ou deixaram de me convidar (rs). Na verdade, o acesso à produção de livros aumentou, a tecnologia editorial mudou, se espalhou sobremaneira. Está difícil acompanhar.
Quais são suas referências de pessoas, livros ou qualquer outro tipo de conteúdo inspirador? Pode ser também de fora do Brasil.
Dentre tantos, vou ficar com um que deslocou minha ótica. Foi a leitura de O herói com o rosto africano. Clyde Ford, o autor, é um quiropata afro-americano atuante na área da psicologia somática. Ele inicia o ensaio se perguntando como falar de uma ancestralidade africana, que ele desconhecia, mas sabia ser importante, para seus filhos assíduos dos McDonald’s. Sem ser um intelectual da área social, quase um leigo na pesquisa de campo, ele vai, no entanto, compartilhando insights, para mim, cativantes. A certa altura, ele enxerga os movimentos negros, a diáspora africana nos seus termos, como a própria jornada do herói mítico que se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. Essa diáspora seria um contínuo de desafios sobre desafios. Em outro momento, ele constrói uma analogia entre o que ele observa em seu consultório, onde a dor é a principal queixa. A escravidão africana seria também uma nevralgia que provoca padecimento intenso e de longa data. No seu argumento, configura um trauma. Propõe, então, pensar no mote enquanto consequências para a comunidade simbólica envolvida com ela. Num extremo estaria aquele que supõe o ancestral escravizado demandando reparação quantificada no sofrimento. Noutra ponta a descendência do escravizador, com ou sem culpa irreparável. As sociedades contemporâneas, nessa visão, necessitam lidar com as raízes da discórdia racial profunda indo além das dinâmicas do racismo por ela instaurado. Seria a terapia necessária para tratar o desvio da escravidão que provoca muita dor. A tese dele tem outros desdobramentos, mas o que trago até aqui é suficiente para mostrar o porque ele mudou minha percepção ou como aquela leitura fez muito sentido. Por provocar esse olhar de primeira vez, sem discurso desgastado, eu comecei a revisitar o caso brasileiro, em que os repertórios africanos ou afrodescendentes formam esse nó. Verdadeiros tabus evitados de qualquer forma ficaram bastante desconhecidos, recalcados mesmo. A terapia seria trazer esses conteúdos à baila. As novas gerações superarem nossas ignorâncias é o primeiro passo.
Quais são os preconceitos e erros mais comuns ligados à questão presentes no vocabulário das pessoas? Como devem ser corrigidos desde a infância?
A semântica é danada para promover termos ou expressões sexistas, homofóbicas, antissemitas e por aí afora. Mas não podemos esquecer que surgem também para cutucar a realidade. Pretagogia, uma perspectiva cearense criada pela professora Sandra Petit, sintetiza toda a crítica aos currículos colonizados, discussão em alta na Educação. A infância, da qual falamos, tem esse comportamento de ajustar suas descobertas com a linguagem que inventam. O educador é um provocador. Dependendo da faixa etária, chamar a atenção para as visões de mundo que os termos carregam, desafiá-las a encontrar outros, exercitar novidades é uma forma de não se manter neutro já que nem a linguagem é.
Você acredita que hoje a criança negra tem mais consciência e orgulho de suas origens do que há dez anos? Pode dar exemplos?
Sim, o lugar delas é onde elas quiserem estar. Essa máxima adaptada tem a ver com a representação e a representatividade do modelo ser negro para a criança negra, mas não apenas. Explodir as restrições é um lado da moeda. O outro é posicioná-la em sua beleza, em seu protagonismo, trazer como referência realidades inspiradoras. Há muito pouco tempo não havia notícias de soberanas ou líderes africanas mais republicanas, personagens em posições sociais diversas e não apenas as subalternas, sentimentos nas situações mais normais da vida. A presença negra na história do mundo ainda tem muito a dizer para crianças.