Quando perguntadas sobre qual a melhor definição para poeta, algumas crianças responderam: “Alguém que descobriu algo no mundo”, “qualquer pessoa que voa pelo ar”, “porta”. Parece que descobrir é verbo que move tanto o poeta quanto a criança, ambos em constantes experimentações.
Essas definições poéticas, pinçadas do livro Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças, do colombiano Javier Naranjo, foram lembradas pelos palestrantes da roda de conversa Os desafios de escrever, ilustrar e editar para crianças, que aconteceu neste ano no Instituto Vera Cruz, em São Paulo. Estavam no bate-papo o editor Adilson Miguel, o poeta Fabrício Corsaletti, o ilustrador Odilon Moraes e a especialista em literatura infantil Cristiane Tavares, coordenadora do curso de pós-graduação Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica.
Mas, antes mesmo de se falar em poesia, os convidados falaram da criança – ou de concepções de infância. Adilson abriu a discussão mencionando que existe uma prática comum de entender a criança em seu negativo, como um ser incompleto. “E todo livro feito com essa concepção por trás terá um resultado ruim”, afirma. “Óbvio que a gente tem que considerar que esse leitor é uma pessoa em desenvolvimento, um leitor em desenvolvimento.”
De acordo com o editor, a criança não tem estereótipos construídos que a afastam da vontade de querer ler poesia, o que é comum entre adultos que afirmam não gostar do gênero. Essa percepção ainda isenta de preconceitos proporciona experiências com a escrita poética. “A criança está completamente aberta e não vai oferecer uma resistência a um poema, a um texto literário, o que talvez adultos possam ter”, complementa.
O que o mundo adulto vê como incompletude, uma certa precariedade na infância, o ilustrador Odilon Moraes destaca como algo precioso. A precariedade não diminui a potencialidade, segundo Odilon. “A criança usa com liberdade a linguagem. Ela fala coisas que a gente não falaria justamente porque a gente sabe que não é daquele jeito que se fala. E a precariedade torna mais universal a capacidade que temos de pensar.”
Um exemplo? Odilon resgata dos anos 70 um livro de Pedro Bloch, Dicionário de humor infantil. Se procurar a definição de avestruz no dicionário, o leitor vai encontrar que é uma “ave do gênero structus, habitante das savanas”. Já na obra de Bloch, uma criança sintetiza: “É uma girafa, só que tem que é passarinho”. Tão mais simples e direto, não?
Para Odilon, o adjetivo “infantil” é um grande complicador na literatura. Ele defende a ideia de uma literatura sem remetente. “Não costumo ter essa ideia de intencionalidade, de um receptor da produção artística. Na literatura, uma das coisas mais bonitas é que é o outro, o leitor, que escolhe quem escreve para ele. Lê um poema e tem certeza que foi escrito para ele, mesmo que tenha sido escrito uns duzentos anos atrás, em outro lugar do mundo”, diz.
Ao escrever ou ilustrar, não é o remetente que o autor deve atingir. “Mas é preciso atingir esse lugar onde a descoberta das coisas fazem um sentido diferente, essa brincadeira que pode chegar a um poema”, diz Odilon, que lembrou o poeta Manoel de Barros para tratar da intrínseca lógica poética das crianças. “Ele fala que a criança e o poeta trabalham na semente da palavra. E a criança é a semente da palavra. Ela é a semente de tudo. Tudo para ela é semente de alguma coisa. O mundo é semente de outras coisas.”
Se o poeta é aquele que desconstrói o mundo, os participantes seguiram desmontando ideias que circulam por aí. Para Fabrício Corsaletti, autor de livros como Zoo zoado e Zoo zureta, o público infantil é exigente e crítico quanto aos seus interesses literários. E, se há uma diferença entre crianças e adultos quando o assunto é poesia, ela reside na realidade de que livro para adulto “não vende nunca”. “E poesia para crianças pode vender”, brinca.
Numa prosa bem descontraída, ele compartilhou um pouco seu processo criativo. Ao escrever os poemas dos seus últimos livros infantis – “três livros, cada um com 30 poemas, cada poema com três versos” –, ele perseguiu a tensão poética e o humor e evitou excessos de inversões sintáticas e vocabulário demasiadamente abstrato.
Fabrício defende uma poesia para crianças que extrapole a criação de poemas com versos rimados. “É péssimo ver o adulto facilitando o verso, criando um verso frouxo, ou ter medo de fazer uma elipse e a criança não entender, não criar tensão na linguagem, só ter rima pela rima”, conclui.
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“eu gosto do camarão...
especialmente
com limão
o golfinho salta
onde fica o trampolim?
ele responde: ‘dentro de mim’”
(poema de Zoo zureta)