Contos para rir, chorar e sentir medo

26/01/2017

Por Heloisa Prieto

 

“Quando eu era menina resolvi, para uma história ser boa, tem que fazer rir, chorar ou sentir medo, senão fica chata e não prende a atenção.” Tatiana Belinky fazia esse comentário enquanto anotava ideias em duas cadernetas ao mesmo tempo, escrevendo com ambas as mãos, rindo baixinho, balançando a cabeça como se centenas de outras invenções estivessem pedindo licença para sair de lá.

Contrariando a tendência do início dos anos 90, segundo a qual se dizia que criança só lia livro curto, com palavras fáceis e enredo simples, Tatiana traduzia grandes clássicos da literatura internacional para a mais tenra idade. Ao afirmar que meninos e meninas gostam de palavras difíceis e sonoras, ela nadava na contracorrente, felizmente, com grande sucesso. Não sei se todos os escritores têm o privilégio de entrar em contato com uma grande mentora, mas a troca com Tatiana certamente norteou toda a minha carreira.

Vários outros tabus marcavam aquele período: contos de fadas clássicos eram considerados politicamente incorretos, contos de terror e suspense eram absolutamente proibidos, o enredo deveria ser o mais simples possível e cada livro deveria conter apenas uma única história, pois existia a crença de que muitas páginas assustariam o jovem leitor.

O que fazer com minha paixão por tragédias, mitos gregos, contos de suspense e histórias encantadoramente perigosas da tradição oral brasileira? A primeira conversa com Lilia Schwarcz, que então elaborava o lançamento da Companhia das Letrinhas, foi tão emocionante quanto o encontro com uma grande companheira de aventuras. Antropóloga e leitora perspicaz, Lilia defendia a necessidade de compartilhamento cultural por meio de narrativas milenares.

O primeiro capítulo de nossa longa e deliciosa colaboração foi o livro Gnomos e duendes, inaugurando a coleção Quase tudo o que você queria saber. O jogo de ressignificar antigas narrativas mesclando-as com recontos contemporâneos encantou muitos leitores e, ao longo do tempo, gerou ainda outros títulos: Mata, Terra – o primeiro detentor do prêmio melhor livro de folclore, da União Brasileira dos Escritores – e Mil e um fantasmas, adaptado para o teatro, com grande sucesso, pela Cia. O Grito.

Enfim, naquele mesmo período, Beth Carmona, na direção do núcleo infantojuvenil da TV Cultura, fizera um convite inusitado. Sabendo de minha “estranha” predileção por contos de suspense, pediu que eu escrevesse uma série temática com histórias de terror para o programa Lá vem história. Assim que comentei sobre esse chamado com Lilia, ela me sugeriu expandir a proposta e montar uma grande antologia de contos do mundo inteiro.

Novamente, uma grande ousadia: nascia um livro originado de roteiros, prática comum hoje em dia, mas impensável naquele tempo. Inicialmente, meu material de pesquisa se restringia aos contos de suspense. Tomando a frase de Tatiana como inspiração, passei vários meses buscando contos maravilhosos, fábulas e sagas que pudessem contemplar todas as categorias elencadas: fazer sonhar, rir e ter uma pontinha de medo.

Como encontrar lendas de todos os continentes? A busca de narrativas foi uma jornada inesquecível, com aliados maravilhosos. Por exemplo: quando menina, eu me encantava com o Polo Norte e não queria, de modo algum, deixar de recontar uma história das terras do gelo. Qual não foi minha surpresa quando Luiz Carlos de Araújo, da Livraria Francesa, ciente de minha pesquisa, avisa que encontrara uma antologia com narrativas da tradição “inuit”, do folclore esquimó. Assim surgiu o conto O caminho das estrelas, sobre dois ursos-polares. Enorme gratidão eu também senti quando minha querida amiga Lilian Tanigucchi chega de uma viagem à Austrália e me presenteia com livros da tradição maori.

Aos poucos, as histórias foram chegando a mim. E para honrar minha predileção por contos tenebrosos, recontei um dos contos de Canterbury, recolhidos por Geoffrey Chaucer: A armadilha da Morte. A história fez sucesso entre as crianças, para espanto dos adultos. Durante um debate com pais sobre contos de suspense, uma mãe confessa: “Na hora de ler seu livro, eu sempre saltava a página dessa história horrenda, acreditando que minha filha não percebia. Até que ela me perguntou: 'Mamãe, quer que eu leia para você aquela história que te dá tanto medo?’”.

Pesquisa pronta, novo desafio: certas histórias eram breves, outras longuíssimas, repletas de peripécias. Além disso, os contos do programa Lá vem história só deveriam ter uma página de texto, correspondendo ao seu tempo no ar. Meu objetivo passou a ser montar uma antologia na qual o leitor pudesse ter um conto por página, uma espécie de livro mosaico que se lê sem ordem definida. Sintetizar não bastava, pois resumir histórias sempre lhes tira o sabor. Optei por escolher cenas de histórias consideradas como pontos de virada e tecer a narrativa em torno delas.

Após a entrega dos 60 contos para Lilia, optou-se por dividir a pesquisa em dois livros: Lá vem história e Lá vem história outra vez.  Em seguida, a equipe indicou Daniel Kondo para as ilustrações. Lembro-me muito bem de nosso primeiro almoço e da felicidade que senti quando ele propôs ampliar o jogo da leitura escolhendo ícones coloridos para marcar os gêneros narrativos inventados por Tatiana, bem como inserir um mapa-múndi habitado pelos personagens de cada conto.

Mas a maior de todas as surpresas veio com o tempo, pois Lá vem história continua atuando como um passaporte para a amizade, levando-me a escolas e teatros, aproximando-me de leitores de todas as idades em diversos lugares do país. Um livro que nasceu do encontro de várias sensibilidades e contou com a influência de Tatiana, a ousadia criativa de Lilia, o convite corajoso de Beth, o olhar lúdico de Daniel. Muitos foram os textos e desenhos inspirados no original que recebi. Nesses momentos, a sensação boa de ter cumprido a verdadeira função do narrador: suscitar o desejo de que lá venham muitas outras histórias.

***

Heloisa Prieto escreve e traduz, tem 75 obras publicadas, a maioria delas pela Companhia das Letrinhas, tais como Lá vem história, Mil e um fantasmas e O estranho caso da massinha fedorenta. Pesquisadora de mitos e lendas de diferentes países, é mestra em comunicação e semiótica (PUC) e doutora em literatura francesa (USP). Durante a infância, teve grande contato com tradições orais da Espanha, por meio da bisavó, do Japão, por meio da avó adotiva, da Bahia, por meio da mãe, indígenas, por meio do pai, apaixonado pela cultura xavante. As múltiplas vozes que alimentaram sua imaginação marcam sua narrativa. Tem obras adaptadas para a TV, o cinema e o teatro.

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