Ler e(é) resistir

01/02/2017

Por Cristiane Tavares

 

Alguns dados estatísticos sobre a situação de risco de meninos e meninas na sociedade contemporânea não são nada animadores: 30 milhões de crianças em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas em 2014 devido à guerra, à violência e à perseguição; mais de 16 milhões de bebês nasceram em zonas de conflito, em 2015; crianças representam quase metade de todas as pessoas que vivem em extrema pobreza, embora componham cerca de um terço da população mundial, segundo o Unicef.

Como contraponto a essa situação extrema gerada por um sistema capitalista que converte tudo em mercadoria, naturaliza a desigualdade, lucra com a exploração desumana, propaga formas discriminatórias de relação social e não poupa sequer a infância, surgem movimentos de resistência nos mais diferentes meios. Resistir é palavra de ordem em meio aos desmandos.

Resistência é o nome do romance de Julián Fuks, publicado pela Companhia das Letras, vencedor dos Prêmios Jabuti e Oceanos em 2016. Resistência é a melhor tradução para as ocupações estudantis que se iniciaram no Brasil em 2013 e permanecem, à revelia do poder instituído de forma ilegítima no país. Resistência é não aceitar desvio de verba pública destinada à merenda escolar. Resistência é o que fazem autores e autoras negras que escrevem e publicam mesmo com espaço visivelmente reduzido nas editoras. Resistência é o que sustenta grupos de pesquisa dedicados à análise da representatividade negra, indígena, LGBT na ficção infantojuvenil brasileira.

Resistência é o que fazem pais e professores em busca de publicações que reforcem positivamente a identidade plural de seus filhos e alunos. Resistência é poder escolher obras destinadas às crianças que valorizem, sobretudo, sua inteligência, sensibilidade e formação crítica.

Ler só é resistir se houver na ação consciência de seu alcance político. Ação política que se limita a ser parte de um todo complexo, composto por outras partes: o acesso ao livro como bem público, mais do que produto comercial; a oportunidade de ler de forma compartilhada, ampliando pontos de vista; a possibilidade de reler, rever e questionar o que se lê; a opção de indicar leituras com critérios construídos de forma reflexiva; o exercício da crítica autônoma, não encomendada ou prescrita; a chance de criar narrativas de autoria e vislumbrar horizontes poéticos, socialmente mais justos.

Como isso pode ser reconhecido na literatura destinada às crianças? Graciela Montes (1), escritora argentina, aponta três fantasmas que costumam devorar a literatura infantojuvenil: a frivolidade (comodidade, facilidade, falsa ideia de prazer comumente associada à leitura); a escolarização (domesticação escolar da literatura, marcada por utilitarismo e classificações superficiais) e o mercado (o mais temível e poderoso dos fantasmas, sob o slogan “o que vende, manda”).

Resistir livremente a esses três fantasmas é um enorme desafio. Dentre outros fatores, duas premissas parecem essenciais para uma literatura destinada às crianças, que ainda faça sentido como forma de resistência: o rigor estético e a coerência ideológica.

Por rigor estético, entenda-se a concepção de livro como objeto artístico, acima de tudo. Artístico que se manifesta em diferentes linguagens: literária, plástica, editorial. Por coerência ideológica, entenda-se a definição clara de uma linha editorial específica, circunscrita em determinado viés ideológico identificável para o leitor. Observadas essas premissas, o livro tende a preservar seu caráter cultural e político, abrindo espaço para que a leitura possa se realizar como resistência.

E como isso pode ser potencializado em conversas apreciativas realizadas com as crianças, mediadas por um adulto? Se a leitura é espaço de resistência, é, portanto lugar de encontro democrático, necessariamente polifônico e dialógico. Roteiros predeterminados, questões fechadas e respostas prontas dão lugar a rotas que preveem desvios e atalhos, questionamentos abertos como ponto de partida e múltiplas chaves de leitura que considerem, sobretudo, a surpresa como (provisório) ponto de chegada – aquele que se abre para novos percursos.

Para que isso se torne viável, cuidados por parte do mediador são bem-vindos: um conhecimento prévio e aprofundado da obra; disponibilidade para dialogar com outros olhares; uma escuta atenta; tranquilidade para partilhar o silêncio e a dúvida; atenção para fazer circular a palavra de modo equilibrado; desejo de ampliar percepções e ajudar a construir a autonomia leitora.

Para isso, é preciso tempo e disposição para o encontro, antes de tudo. Tempo para construir pontes de sentido partilhado, para refletir sobre uma realidade tão desalentadora como a que apontam os dados da Unicef, tempo para resgatar do caos a infância perdida em números absurdos, tempo para ler e agir em meio a urgência de re(existir).

 

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Cristiane Tavares é mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, coordenadora do curso de Pós-Graduação Livros, crianças e jovens: teoria, mediação e crítica, do Instituto Vera Cruz, colaboradora das revistas Emília e Cultura! Brasileiros e autora de Quintais (2007) e Aos olhos do mar (2015).

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(1) MONTES, Graciela. La frontera indómita – en torno a la construción y defensa del espacio poético. México: FCE, 1999.
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