Por Penélope Martins
Há uma história muito, mas muito antiga que conta a saga de um príncipe para recuperar sua jovem e bela esposa que fora sequestrada por um rei maquiavélico.
Após o rapto, o maligno rei, que possuía asas e chifres como um demônio, levou a princesa para viver em seu palácio numa ilha perdida no meio do oceano, onde o príncipe jamais a alcançaria. Durante os dias seguintes, o rei molestador esteve diante da princesa com toda generosidade e delicadeza a fim de convencê-la a se tornar sua legítima esposa, mas a jovem só repetia palavras de fé em seu propósito de amar o príncipe de quem fora separada.
Passados muitos dias sem solução para a maldade feita ao casal, ao príncipe foi sugerido pedir auxílio para um poderoso monarca encantado, dono de poderes míticos e cujo corpo andrógino era de homem-macaco. Foi este monarca quem resolveu o drama. Depois de unir as mãos no centro do seu peito, agachar com suas pernas fortes e saltar sobre as águas, num único voo, alcançou a ilha, liquidou o rei diabólico e resgatou a princesa.
Toda sorte de coisa se passa nessa história de mais de quatro mil anos que eu brevemente (re)conto aqui. No final, quando o príncipe se vê diante de sua amada esposa, os deuses concedem ao monarca homem-macaco a realização de um desejo. E o que ele pede? Fé constante e confiança inabalável.
Revisitando a história, em busca de um significado puro para o amor que une o príncipe e a princesa, tomamos consciência que as grandes batalhas acontecem dentro de nós. Somos protagonistas e antagonistas das nossas demandas, usamos vestes de príncipe justo e imolado, mas também chifres de diabo; por vezes, lágrimas de sequestrado; em outras, coragem de bicho...
Talvez seja por isso que devemos preservar o ato de contar histórias, para nos auxiliar na reconstrução dos passos que damos pelo caminho da vida, para poder retornar ao começo e perceber o que antes passou despercebido, compreender nossas emoções, estabelecer em si mais força, mais altivez, a renovação da fé para continuar na estrada.
A narração de histórias encerra em si dois elementos essenciais para nossa possível humanidade: o primeiro deles é a própria escuta de sons, quer pelos ouvidos, quer pela vibração que vivifica a matéria no mundo, comprovando a mutabilidade inerente à vida; o segundo elemento é a busca da sabedoria pela investigação da razão e do sentimento que se propaga na ação humana.
Contamos histórias que vêm de muitos lugares, milhares delas sobreviveram os tempos que as sucederam, assim como transcenderam o lugar e a cultura em que surgiram por força de alguma espécie de virtude nelas contida.
Pela força que expressa, a história não se limita à figura do narrador; ao contrário, ela estabelece uma relação entre seres humanos. Movimentando sensações individuais, de dentro para fora, a história proporciona ambiente para o diálogo.
Por seu valor inquestionável, a história é o próprio chamado na roda de narração, enquanto o narrador se coloca como um instrumento mágico capaz de reverberar antigos conhecimentos.
O narrador é sempre infinitamente menor do que a história que ele conta. São as palavras que merecem vigor e dedicação, além dos aplausos e dos silêncios reflexivos de seus ouvintes. Todavia, não podemos nos esquecer que o narrador também é história que narra a si mesma.
A relação entre história e narrador é um trabalho de investigação constante; trata-se de uma busca pela verdade, não só na eleição de histórias prediletas para contar como, ou principalmente até, a ressignificação de tudo que já foi contado, recontado, tricontado por assim dizer.
O desafio maior para o narrador de histórias é se despir da presunção de quem porta o saber para adotar como lema o velho provérbio dos ouvidos mais próximos da boca que fala serem os mais carentes da sabedoria da palavra.
Seja pelo riso, seja pelo choro, a história atravessa o narrador e o transforma, flui em palavras para lhe renovar a fé e a confiança na re-existência humana.
Tal qual uma visão anterior da civilização mais remota que conhecemos nos livros da escola, há um apelo ancestral que nos vincula de maneira inexplicável às narrativas e nos convida a pensar sobre a impermanência das coisas no mundo a partir da nossa própria finitude.
O que fará de um narrador um grande realizador é a própria história repetida por mil e uma bocas.
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Penélope Martins é advogada, escritora e narradora de histórias, autora de obras como Poemas do jardim – Primeiro catálogo de brincadeiras zoobotânicas poético-ilustradas (editora Cortez) e Quintalzinho (editora Bolacha Maria), ambos em parceria com a artista Tati Móes. Como narradora já se apresentou em diversos lugares do Brasil e em Portugal. Mantém um blog para fomentar leitura, o Toda Hora Tem História, com interface com o blog lusitano, Clube de Leitores.