Nas histórias criadas pelo escritor Tino Freitas, quase sempre acontece tudo ao contrário do esperado. Esperado por quem? Acredite: por muita gente. Romper com padrões e estereótipos limitantes da potência do mundo têm sido um movimento contínuo de uma literatura "para crianças" que inclui todas as idades. Desconstruções, subversões e chacoalhadas: é com verbos como estes que Tino segue sua artesania criativa, que passa pelo diálogo entre linguagens – além de escritor, ele também é músico –, até mesmo a cozinha. “Contos de fadas são como um saboroso prato de feijão, arroz, bife e salada. Todo mundo gosta. De vez em quando a gente vai à cozinha e inventa um jeito novo de apresentá-lo, como criando um baião de dois, ou um picadinho”, brinca. Por isso, mais do que dizer que se trata de um artista do livro, justo seria afirmá-lo como “artista de livros”. O plural parece pré-requisito em suas criações.
Tino Freitas nasceu em 1972, em Fortaleza. É escritor, músico, jornalista, especialista em literatura infantil, contador de histórias e mediador de leitura. Tem mais de 30 livros publicados. © Cícero Bezerra
Gosto muito de cozinhar. Mesmo no mundo das metáforas. (Tino Freitas, escritor)
Todos iguais, mas muito diferentes
“A minha história é, talvez / É talvez igual a tua”, canta Belchior em Fotografia 3x4, canção que é uma das inspirações de Tino quando pensa com seus botões – decerto coloridos – para que servem as narrativas de ficção.
Talvez, por essa definição de que somos feitos de histórias, a literatura – seja pela fantasia que a compõe, seja por retratar um tanto do que há de real, se aproxime mais dessa percepção da arte como um retrato da humanidade. (Tino Freitas, escritor)
Fotografias de uma humanidade que não é estanque nem rígida, mas fluida e em constante transformação. São assim as histórias de Contos de fraldas, livro de Tino Freitas pela Companhia das Letrinhas. Com ilustrações da premiada artista plástica Talita Hoffmann, a obra bebe na fonte dos contos de fada para embaralhar enredos, personagens, referências, e fazer tudo acontecer de outros jeitos.
Em Contos de fraldas, Tino Freitas reinventa contos de fadas tradicionais, e cada história ganha uma nova roupagem por meio do traço da ilustradora Talita Hoffmann.
Contos clássicos revisitados
No livro, cada conto revisita um conto clássico. Em “Sapatinhos de cristal”, quase todos os personagens têm a pele não branca, é o rei quem troca as fraldas do bebê, a boneca tem uma camiseta feminista. Já os lustrosos e translúcidos sapatinhos de cristal, apesar de darem título à história, estão mais para um peixe fora d’água, já que não servem para o bebê real, que prefere mesmo um sapato de crochê vermelho. Em “Os anões”, quando a Branca de Neve sai de cena, os protagonistas são os velhos conhecidos sete anões. Porém, aqui eles aparecem no papel de cuidadores afetuosos que brincam, sim, mas também cantam canções de ninar e botam para dormir.
A partir dessas e outras artimanhas que a literatura possibilita de torcer o imaginário social e construir outras realidades possíveis, Tino convida os leitores a notar os detalhes que compõem o encontro do texto com a imagem. De que forma elas mexem com os significados culturais, históricos, sociais e políticos das narrativas que povoam a imaginação coletiva? Certamente, muitas, no plural. O que importa é que o saldo da leitura seja o encontro com o prazer das histórias. “Antes de tudo, o desejo é o de contar uma boa história (no caso do Contos de Fraldas, três)”, brinca o autor.
Autor de livros como Cadê o juízo do menino (Brinque-Book, 2018), Os invisíveis (Companhia das Letrinhas, 2021, em parceria com Odilon Moraes), O que é preciso pra ser rei? (Pequena Zahar, 2022, em parceria com Leo Cunha) e o novo Contos de fraldas, Tino Freitas divide com os leitores, neste papo abaixo, como foi o processo de criação do lançamento mais recente, e também o que vai na sua cabeça de escritor, pesquisador e mediador de leitura quando o assunto é literatura infantil.
Confira a entrevista na íntegra com Tino Freitas
Como foi sua relação com os livros na infância? O Tino criança influencia a criação do Tino autor?
Tino Freitas: Morei boa parte da infância no interior da Bahia, e a banca de revistas era a minha internet, onde eu me conectava com o mundo. Fui um leitor voraz de gibis. Até me deparar com literatura na banca, através da Coleção Taba (ed. Abril Cultural), repleta de histórias de autores e ilustradores nacionais como Joel Rufino dos Santos, Sylvia Orthof, Walter Ono e Alcy Linares, que trazia ainda um mini-LP com a narração dramática do texto gravada de um lado e uma canção de um ícone da MPB do outro. Eu adorava. Comecei aí. Depois vieram as coleções como a enciclopédia O mundo da criança, cheia de clássicos.
A minha infância influencia minha criação, pois não consigo distinguir o autor da pessoa. Somos um só. (Tino Freitas, escritor)
O que vivi e guardo nas memórias transita ao lado do mundo que percebo hoje, mas não é uma batalha entre o presente e o passado e sim uma viagem em que essas temporalidades caminham juntas na construção de cada livro-futuro.
Pensando um pouco no caminho contrário, quais histórias você gostaria de ter lido quando criança, mas que ainda não existiam?
Essa resposta é fácil: gostaria de ter acesso a muitos outros livros infantis que valorizassem a cultura negra e indígena, que valorizassem a independência da mulher, que tratassem de questões de gênero, que ampliassem o meu olhar sobre o respeito às diversas religiões, o respeito pelo diferente. Certamente me fariam crescer com menos preconceito, ignorância, falsas certezas.
E a desconstrução sempre em andamento do meu machismo, racismo, entre outros “ismos” seria menos difícil. Penso que a quantidade de exercícios diários que faço para desconstruir a gordura de preconceitos alimentados e engolidos desde a infância seria menor se eu tivesse tido acesso a livros sobre esses temas. Fizeram falta naquele tempo. Ainda fazem falta hoje. Mas estamos caminhando. O que já é uma pequena boa notícia para nossos filhos e netos.
Histórias clássicas ganham cada vez mais releituras, fundamentais para a movimentação das narrativas no imaginário social. Qual foi sua motivação para criar o Contos de fraldas?
Ah, eu gosto muito de cozinhar. Mesmo no mundo das metáforas. E os contos de fadas são como um saboroso prato de feijão, arroz, bife e salada. Todo mundo gosta. De vez em quando a gente vai à cozinha e inventa um jeito novo de apresentá-lo, como criando um baião de dois, ou um picadinho.
Contos de fraldas foi a nova receita que inventei para, ao lado da Talita Hoffmann, com humor, crítica social e criatividade, ofertar um novo prato, delicioso como o conto de fadas tradicional, mas com ingredientes novinhos em folha.
Quem será que cuida do principezinho quando a Branca de Neve precisa sair de casa? E a pequena Rapunzel, vai ou não vai para o trono? Os recontos do livro Contos de fraldas, escrito por Tino Freitas e ilustrado por Talita Hoffmann.
Neste livro, o rei é quem troca as fraldas, a princesa conta com uma rede de apoio, bebê tem lugar de fala. Remexer os sentidos das coisas como elas ainda estão dadas hoje por meio da literatura é uma inspiração pra você? Pode falar um pouco sobre essa potência para o desacato?
Desconstruir de forma “simples”, direta e divertida alguns temas importantes na vida de um casal que está com um bebê era um antigo desejo meu. Tratar de temas pungentes em nosso contexto social, também. Estão aqui e ali na minha literatura.
Nos livros que tenho publicado, tanto em Os invisíveis (parceria com Odilon Moraes) quanto em O que é preciso pra ser rei? (parceria com Leo Cunha e Fê), por exemplo, buscamos (meus parceiros e eu) alcançar o olhar atento das crianças, mas também de seus pais para, quem sabe, provocarmos uma conversa. Seja ela silenciosa, consigo mesmo, seja em família.
Antes de tudo, o desejo é o de contar uma boa história (no caso do Contos de fraldas, três). Mas há sempre a oportunidade de, através desses contos ilustrados, chamar a atenção para temas importantes. Veja a sutileza da estampa de uma das bonecas da página 10, em que fazemos referência ao empoderamento feminino. Não é uma aula. É um livro divertido. Mas o humor tem força para conversar sobre tudo. Inclusive sobre questões mais que atuais, presentes nas famílias com bebês.
Na sua opinião, lê-se melhor hoje que quando você começou sua carreira? O que você percebe de mudanças expressivas nesse sentido?
A cada ano que passa, tenho a percepção de que temos mais acesso à leitura. E não vou aqui me restringir aos livros de papel. A internet, de certa forma, ampliou os caminhos entre o livro e os leitores. Os clubes de leitura também. Na minha infância, no interior da Bahia, não havia livrarias por perto, nem bibliotecas. Hoje há mais – embora haja um longo caminho para que possamos alcançar mais leitores através de livrarias e bibliotecas físicas.
Então, pensando nesse leitor que não habita as grandes cidades (essas com livrarias em shoppings, grandes Bienais movimentando milhares de jovens), como eu fui um dia, percebo que o acesso aos livros segue crescendo. Porém, mais que o acesso, é preciso acordar o desejo de se ler mais. Primeiro precisamos ler mais para depois lermos melhor – seja lá o que isso queira dizer. Vamos caminhando, um passinho por vez. Mas penso que não estamos na inércia. E que caminhamos para a frente.
A arte tem um papel na sociedade? Pra você, qual seria esse papel? Mais especificamente, da literatura.
A arte faz parte do que nos torna humanos, num sentido mais amplo. Somos feitos de histórias. Nos reconhecemos nela, como se estivéssemos olhando num espelho um pouco “distorcido”, com “filtros”. Reconhecemos nela nossas vivências, nossos desejos, nossas faltas, nossos pecados e virtudes. Essas histórias estão “impressas” nas artes plásticas, na música, na dança.
Também é assim na literatura. Lembro da minha primeira visita ao MASP (Museu de Arte de São Paulo), no início desse século. Eu ali nos meus 40 anos, passeando nos corredores repletos de obras de grandes autores no mundo, de repente, diante de uma obra, fico paralisado e começo a chorar. Um choro nada discreto, mas aquele em que as lágrimas pingam no chão como uma chuva nascendo. Estava diante de Retirantes, de Portinari. Depois, tentando entender aquele momento, percebi que me vi refletido nas personagens do meu livro preferido, e que já li e reli quatro vezes, Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Acontece o mesmo quando ouço a música Fotografia 3x4, de Belchior. Talvez, por essa definição de que somos feitos de histórias, a literatura – seja pela fantasia que a compõe, seja por retratar um tanto do que há de real – se aproxime mais dessa percepção da arte como um retrato da humanidade.
Não conseguiríamos viver as alegrias e as durezas da vida sem nos vermos refletidos, mesmo que distorcidos, nas artes em geral. (Tino Freitas, escritor)
O humor e a crítica social estão presentes nos seus quatro livros publicados pelo Grupo Companhia das Letras, e perpassam sua obra de forma geral. Qual você diria que são seus grandes temas de interesse como autor?
A vida passa nas páginas dos meus livros. Mesmo quando trato absolutamente de fantasia. Penso que é difícil não falar do que me atinge como cidadão. Mas a escolha dessa ou daquela temática não é algo premeditado. Posso ser impactado por uma notícia no rádio (no caso de Os invisíveis) ou de uma indignação com a situação política do país (como no caso do O que é preciso pra ser rei?) e isso ser a ignição para escrever uma história. Mas o primordial, o que me move como autor, principalmente, é escrever uma boa história.
Uma boa história passa por dosar os temperos da fantasia e da realidade, para que, ao final, a leitura para o público destinado (no meu caso, principalmente, as crianças) seja uma saborosa vitamina. (Tino Freitas, escritor)
Literatura, música, jornalismo, pesquisa, mediação de leitura. Sua expressão se manifesta em variadas linguagens e áreas de atuação. A infância está presente em todas? De onde vem seu interesse pela infância?
Eu descobri tardiamente que tinha um link com a infância. Sempre tive um jeito moleque de ser. Mas foi a partir de 2006, quando ingressei como músico voluntário no projeto Roedores de livros, que percebi que conseguia dialogar “olhos nos olhos” com as crianças. É algo intuitivo, sim. Mas desde então tenho estudado bastante para reconhecer esse dom como linguagem e aplicá-la nas formas como me comunico com o mundo. Respondendo de uma forma direta, a infância nem sempre esteve presente nos meus caminhos artísticos. Mas, de 2006 para cá, se faz cada vez mais presente na minha voz artística.
Em Contos de fraldas, três contos de fadas ganham novos enredos e protagonistas bebês prontos para grandes aventuras.
Camila Sosa Villada disse nesta última Flip que não pensa em seus leitores na hora de escrever, que as histórias saem do jeito que precisam sair, e que pensa apenas em satisfazer a si mesma com sua criação. Como é essa questão para você? Você tem uma preocupação com a criança que vai te ler? Se sim, em que sentido?
Provavelmente a Camila não escreve para crianças. Quem o faz precisa pensar em como dizer o que busca comunicar.
Vamos ao clube com os filhos, entre outras coisas, para tomar banho de piscina. Há piscina para os adultos e para as crianças. Há uma diferença no tamanho, na profundidade, nos cantos arredondados, mas a água (a literatura como arte) tem que ser bem cuidada, com o cloro e outros elementos químicos, e algum controle da temperatura.
O adulto pode tomar banho com as crianças na piscina menor, indicada para os filhos. Mas as crianças não se sentem confortáveis, seguras, numa piscina feita para os adultos. Então, não consigo escrever as histórias “do jeito que precisam sair”, não só pelo motivo de construir uma piscina mais segura para esse leitor-criança, como também preciso escrever pensando no diálogo com o formato do livro e as ilustrações que darão a ele a forma final. Minha preocupação é ofertar uma piscina em que a criança queira e possa tomar seu banho, seja jogando bola, ou apenas boiando, contemplando o dia.
Não dá para fazer qualquer coisa para criança – e não estou dizendo que a Camila escreva qualquer coisa para adultos. Digo apenas que ela pode escrever o que quiser. Eu posso escrever sobre o que eu quiser. É parecido. Mas é diferente.
Escrever para crianças exige cuidado, expertise, criatividade para além do texto. (Tino Freitas, escritor)
As crianças leem seus livros há anos, e os adultos também, certo? Como tem sido o retorno que você recebe desses leitores tão diversos? O que te alegra e o que te desafia nesse ponto?
É o adulto quem, num olhar mais preciso, define o que as crianças lêem. Sejam os pais ou avós; seja o coordenador da escola que escolhe quais livros estarão na lista do material escolar. Sejam os livreiros que definem quais livros estarão em destaque nas vitrines (pagas ou não) das livrarias. Eu gosto de pensar que escrevo também para crianças. Que minhas histórias alcançam o entendimento desses leitores. Mas busco ofertar camadas extras, surpresas gráficas, metáforas, para que o leitor adulto também possa fazer sua leitura – por vezes diferente das crianças. Venho de um lugar onde a leitura é mediada. Lê-se para e com as crianças. O adulto é parte importante desse processo de leitura. Então o desafio é escrever de maneira que o adulto e a criança se sintam desafiados a seguir virando a página até alcançar o final da história. De preferência, juntos.
Os leitores costumam ver coisas em seus livros que você não viu? Como é esse caminho imprevisto na criação de sentidos feita pelos leitores?
Quando escrevo uma história eu não consigo ler o que está escrito em cada leitor. É impossível. Apenas sinto o que está escrito em mim. Então, acreditando que a literatura é um verbo, que esse processo se completa quando o que escrevo no livro encontra o que está escrito no leitor, não há certo ou errado nas leituras que não percebem o que está posto ali, muito menos quando conseguem ver além do que minha miopia alcançou ao escrever a obra. Digo mais: eu acho sensacional quando essas leituras vivas que nos habitam e se transformam, tantas, se mostram ainda mais potentes na soma que cada leitor oferta ao que está ali imutável no livro impresso.
A literatura infantil pode falar sobre tudo? Enquanto artista, como você lida com a permissão e os limites da linguagem?
Acho que é saudável ofertar para as crianças o mundo que se mostra a elas além dos muros da escola, da porta de casa. Mas deve haver em nós, autores, a preocupação em determinar a melhor forma de tratar determinado assunto. O mundo está ali, vivo, mutável, intrigante e instigante para cada cidadão. Se a criança começa a tomar contato, nos livros que lê, com assuntos pertinentes ao mundo em que vive, quando estiver maior, e se deparar com “a morte”, com “amigos que acreditam em religiões diferentes da sua”, com “algum comportamento que indique abuso”, com o “diferente” do que ele aprendeu em casa ser o certo, saberá de alguma forma lidar melhor com essas questões. Falar sobre tudo – numa linguagem apropriada, possível, para esse leitor-criança – ajuda na construção de um cidadão mais consciente de si e do mundo que o cerca, habilitando-o para lidar melhor com o que lhe é estranho, diferente.
Eu um texto da poeta argentina Cecilia Pavón, ela descreve o apocalipse como um lugar onde os livros foram extintos. Pra você, como seria um mundo sem livros?
Um mundo assim, sem livros, caminhará para um mundo com livros. Somos feitos de histórias. Sem o livro-físico, as histórias retornarão para seu habitat natural, a voz do homem. E, de boca em boca, seremos livros-vivos até que se possa novamente repousar essas histórias num formato físico.
Sabemos da memória do mundo porque podemos acessá-la nos livros. (Tino Freitas, escritor)
*Crédito da foto de destaque: © Thaís Mallon
(Texto de Renata Penzani)