Por Ionit Zilberman
Muitas vezes é difícil identificar precisamente onde começa uma ideia. Para contar a história do livro Hocus pocus - Um pai de presente, preciso reconstruir seus vários começos.
O primeiro aconteceu enquanto eu desenhava. No momento em que o desenho surgiu no papel, assim como mágica, tive a certeza de que o sentido do meu trabalho é reviver a sensação do dia em que meu padrasto me mostrou, pela primeira vez, a sua polaroide SX-70, dizendo que era uma máquina mágica e bastava dizer “hocus pocus!” para a imagem aparecer no papel.
Fiz os primeiros desenhos do livro no Pouso da Cajaíba, uma prainha perto de Paraty, no Rio, num dia de chuva. No início, o texto continha apenas elementos da realidade. Eu contava o causo da máquina fotográfica mágica e reconhecia a importância daquele momento. No entanto, ainda não havia ali uma boa história, que depende do jeito como é contada.
Um tempo depois, conheci a Kiara Terra. Na primeira vez em que a vi, ela se preparava para contar uma história no lançamento de um livro que eu havia ilustrado. Naquele momento, eu não fazia ideia de quanta coisa ainda iríamos viver juntas. Quando a ouvi ali, senti que ela fazia com as histórias que contava uma coisa que eu também fazia ao ilustrar: era como se ela trouxesse para aquela narrativa a sua própria. Não havia neutralidade; só entrega.
Senti um desejo instantâneo de contarmos uma história, só não sabia ainda qual. Naquele dia, revelamos uma para a outra sobre a vontade de fazermos um livro juntas. Nos encontramos algum tempo depois para conversar, contei o causo da máquina fotográfica do meu pai e do tanto que isso ainda era presente na minha vida e no meu trabalho. Ela me disse: “Posso contar?”.
Deu-se ali um outro começo: a minha história se encontrando com a da Kiara. Essa união revelou algo novo, com um ingrediente essencial: a ficção. O olhar e a escrita da Kiara trouxeram esse componente imprescindível para o livro. Compreendi, então, que aquela narrativa que queríamos tecer podia ser fantasia e realidade ao mesmo tempo, transformando-se na nossa história.
Senti uma emoção enorme na primeira vez que li a história. Reconheci naquele momento “o começo é lugar onde a gente está quando acontece uma coisa importante”, nas palavras da própria Kiara, que soube acolher de modo singular as minhas memórias. Esse instante era, definitivamente, mais um começo.
Enviamos o texto para a Júlia Schwarcz ler. O pai do Luiz Schwarcz tinha sido o melhor amigo do meu pai. O projeto seria acolhido com todo o cuidado necessário na Companhia das Letrinhas, onde meu pai se sentiria em casa. Demorou bastante até recebermos a notícia de que, sim, iriam publicar. Era uma alegria saber que essa história seria contada por quem entende o que ela significa. Jamais havia vivido um processo tão partilhado como esse.
Costumo levar em torno de dois meses para produzir as ilustrações de um livro. No caso de Hocus pocus, precisei de quatro meses. As referências estavam dentro de mim e buscá-las significava enfrentar a saudade do pai, fuçar as fotos de infância, voltar no tempo. Em alguns momentos pensei que não fosse conseguir – “Desta vez, a mágica não vai funcionar” –, pois aquilo era tão familiar que achava que não teria o distanciamento suficiente para o trabalho.
Foram longas e intensas as conversas que tivemos, Kiara e eu, até que eu fosse capaz de encontrar um caminho para que as imagens transmitissem o sentimento de entrega que o texto passava de maneira tão poética, simples e verdadeira. Nossa busca era por um livro íntimo, pessoal, de formato pequeno, próximo ao de uma foto de polaroide, com uma certa nostalgia da infância.
Não havia necessidade de usar nenhum “truque”, como colar objetos ou tecidos, nenhum “efeito especial”, assim o desenho revelaria o que tinha de mais genuíno, sem que nada lhe escondesse as imperfeições. Essa não era, para nós, uma história sobre perfeições.
O livro foi se tornando, aos poucos, um álbum de fotografias. O fundo usado para as páginas foi escaneado do meu álbum de infância, usei algumas fotos que guardavam momentos importantes do nosso cotidiano. O projeto gráfico optou por uma tipografia manuscrita, um convite para que o leitor criasse maior cumplicidade com a história que contávamos.
Para a cena final do livro, que traz a menina e seu pai no mar, retratei um dos momentos preferidos com meu pai. Quando menina, nadava mal e tinha medo da água. Ele era nadador, professor de polo aquático. Entrar no mar protegida pelo meu pai era a glória, pois nada de ruim poderia me acontecer.
Depois da morte do meu pai, tive uma série de sonhos em que ele reaparecia. A cena era sempre diferente, mas o roteiro, igual:
— Ué, pai, você não tinha morrido?
— É, mas estava entediado e resolvi dar uma voltinha.
Eu o abraçava bem apertado para aproveitar o momento que, sabia, iria acabar.
Quando estava na minha primeira viagem solo de três meses pela Europa, sonhei que ele entrava comigo no mar. Veio uma onda enorme, pedi ajuda e ele me salvou. Outra onda se formou e ele, mais uma vez, me protegeu. Na terceira vez, ele disse: “Agora é com você”. Esse foi o último sonho que tive com ele. Agora, podia nadar sozinha.
No livro, tudo começa com uma menina olhando para o mar e acaba num mergulho. Essa menina somos nós duas, eu e Kiara, nossas histórias com nossos pais. Hoje, crescidas, nadamos juntas. Às vezes, uma onda grande vem, a gente se assusta, mas sabe que tem coragem de atravessá-la.
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Ionit Zilberman nasceu em Israel, em 1972 e, aos seis anos, veio com os pais para São Paulo, onde mora até hoje. A vontade de fazer livros começou enquanto ela cursava a faculdade de Artes Plásticas e, até agora, já ilustrou mais de quarenta títulos para crianças.
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Ilustração Marcelo Tolentino