O cinema que espia (e revela) a infância

08/03/2017

O cinema, assim como a literatura, passeia pelo território da infância e espia por muitas frestas meninos e meninas de diversos tempos, países e culturas. A sétima arte, que sempre bebe nas fontes literárias, nos convida a conhecer histórias da capacidade humana de criar novas soluções para os conflitos nas relações a partir da observação da infância. Alguns exemplos clássicos são Os meninos de Tóquio (1932), A guerra dos botões (1937), O senhor das moscas (1963) e Os meninos da rua Paulo (1969).

Essas narrativas, no papel ou na telona, evidenciam o que ocorre quando meninos e meninas estão sozinhos, longe da supervisão de adultos, tendo que tomar decisões por si e pelo grupo. Tratam de uma cultura própria das crianças. São um bom jeito de adentrar o universo da infância.

Os meninos de Tóquio e O senhor das moscas guardam um valor correspondente entre si: uma primeira imitação do mundo adulto acaba em transgressão de valores. Ambos são trágicos sem afastar o humor.

No filme japonês, de Yasujiro Ozu, os filhos do Senhor Yoshii, após a mudança da família, estão sujeitos às temerosas maldades do valentão da escola e seus amigos, mas acabam se tornando líderes da gangue motivados pelo próprio inconformismo da subserviência de seu pai.

Em O senhor das moscas, filmado 30 anos depois, um grupo de estudantes sobrevive numa ilha após um desastre de avião e tenta se organizar de acordo com os valores da escola que frequentavam, mas a ala rebelde inverte a ética para retomar o primitivo, o que seria “natural”. O filme de Peter Brook foi uma adaptação do livro de William Golding, de 1954, ganhador do Nobel em 1983.

 

Já na obra A guerra dos botões, escrita pelo francês Louis Pergaud, em 1913, e aberta pelo próprio autor com a afirmativa de que o texto, apesar do título, não era uma “história para criancinhas”, há um outro tipo de provocação. O aparecimento de uma garota, Marie Tintin, para integrar clandestinamente um dos grupos e que, depois de descoberta, é mantida pelo General Lebrac, cria uma atmosfera amorosa entre os dois e também constrói uma quebra de regra dentro da própria exceção: a segregação feminina dentro da segregação que sofre a infância. O livro foi adaptado para o cinema por quatro diferentes diretores, com a última versão de Yann Samuell (2011).

 

Esses três filmes, principalmente A guerra dos botões, relembram Os meninos da Rua Paulo, de Ferenc Mólnar, onde o retorno aos territórios da infância repensa a ética nas relações. A história de Os meninos da rua Paulo, lançado recentemente pela Companhia das Letras, gira ao redor das batalhas travadas por dois grupos de meninos rivais na disputa pelo grund, um terreno baldio, onde jogam péla, fazem reuniões e eleições. O romance juvenil húngaro recebeu três versões para o cinema, com destaque para o diretor Zoltán Fábri e sua adaptação de 1969, que, no Brasil, foi traduzida para Esta rua é nossa.

Mas qual a ponte que une a disputa pelo comando na ilha, as gangues de escola, a guerra no campo e o terreno baldio dos meninos da rua Paulo, na Hungria de 1889, com as crianças de hoje, no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo (mesmo que em tempos atuais sejam mais escassos os grunds, espaços fundamentais para o exercício da infância)?

Uma questão fundamental emerge dessas narrativas: a eleição de um lugar para brincar (na infância, sinônimo de respirar e viver). A luta das crianças pela liberdade de brincar longe da tutela de um adulto, imprescindível para que refinem as relações entre pares, é também uma constante. Infelizmente, na expansão para o mundo adulto, tal linguagem se esvai igual água no ralo.

Histórias de crianças que falam de companheirismo, caráter, respeito, amizade, percepção de si mesmo diante do grupo e valorização da lealdade do outro certamente são uma brincadeira pra levar a sério. As crianças querem e podem protagonizar suas histórias, elas sabem se mobilizar em causas, são aptas para se organizarem na busca de um objetivo e também são capazes de resolver os conflitos.

Basta espiar – ler e ver ou ver e ler.

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