“Senhoras, senhores e crianças, respeitável público, preparem os seus corações, pois o espetáculo do fantástico Circo Tropical já vai começar!”, anuncia da corneta o menino da cara pintada num picadeiro improvisado em seu quintal. A plateia, toda a sua vizinhança, aplaude animadamente.
Sim, estamos no circo. Mas não é um circo qualquer. É o picadeiro de Jonas e o circo sem lona, longa-metragem documental dirigido pela cineasta Paula Gomes, integrante do coletivo baiano Plano 3 Filmes, dedicado a contar histórias de um Brasil profundo que pouco se vê nas telas.
O filme traz a saga de um menino de 13 anos que nasceu num pequeno circo itinerante no interior da Bahia, mas sua mãe e sua avó abandonam a vida circense e se fixam na capital. Jonas Laborda, então, cria seu próprio circo nos fundos da casa, feito com alguns paus e poucos panos, com retrovisor de carro servindo de espelho para os artistas mirins se maquiarem e um trapézio pendurado numa árvore do quintal.
Ao mesmo tempo em que luta por seu sonho, reunindo amigos na missão, treinando os números do circo e convidando os vizinhos para os espetáculos, enfrenta um dos maiores desafios de menino: deixar a infância. “Crescer é como morrer um pouquinho. Porque a gente deixa de caber na gente, nas roupas, no corpo, na cabeça, nos sonhos... E daí todo o movimento que acontece é uma metamorfose bonita, mas também dolorosa”, diz a documentarista sobre sua delicada fábula de crescimento.
O longa estreou no respeitado IDFA (International Documentary Film Festival Amsterdam) como o único representante latino-americano na sessão First Appearance Competition. Premiadíssimo em festivais no México, nos Estados Unidos, na Espanha e na França, chega agora aos cinemas de diversas cidades pela Sessão Vitrine Petrobras.
É imperdível. Portanto: corra, respeitável público!
O filme é resultado de um encontro. Ou, como bem define a diretora, todo documentário sempre “fala de um encontro”. E esse foi um encontro que começou há mais de uma década, quando a diretora incursionou pelo sertão baiano numa pesquisa sobre o universo circense. Dessa pesquisa nasceu o premiado curta-metragem de ficção Sonhos – e surgiu um chamado para uma outra história.
Tempos depois, Jonas Laborda, que protagoniza Sonhos, telefonava para a cineasta com o convite para que ela visitasse seu circo particular. “Quando eu vi aquele circo no quintal, tão mágico, senti que ali tinha um filme. Primeiro pensei que era um filme sobre circo. Mais tarde entendi que era um filme que falava, através do circo, sobre os sonhos da gente e o que fazemos com eles quando a gente cresce”, lembra.
O diálogo entre os dois, Jonas e Paula, rende alguns dos momentos mais delicados e profundos do filme. Enquanto o menino investiga como manter seu sonho do circo no quintal, a cineasta reflete sobre o próprio fazer documental. Em alguns instantes, sua voz suave e cúmplice vaza na cena. “A experiência de realizar um documentário é muito forte, porque a filmagem termina, o corte final fica pronto, mas o vínculo, a experiência que foi compartilhada naquele tempo em que você esteve ali tão perto dos personagens, isso não tem fim.”
Filmado durante dois anos na região metropolitana de Salvador, o filme aborda também a dura realidade da educação brasileira. Jonas não vê horizonte nenhum entre o soar do sinal da entrada e a batida do sino na saída da escola. Seus sonhos parecem não caber naquele lugar.
Para a cineasta, que acompanhou o cotidiano do menino na escola, a instituição muitas vezes não contempla os alunos em sua diversidade. "Deveria alimentar sonhos e não os castrar. Claro que existem professores incríveis lutando todos os dias por isso. Mas acho importante questionar a educação sempre e quando ela não forma jovens que questionam”, conta a diretora, que diz também se sentir um pouco Jonas, remando contra a maré, acreditando na força dos circos dos quintais.
A seguir, confira a íntegra da entrevista que fizemos com a cineasta, que já está envolvida na pós-produção do longa-metragem de ficção com alma de documentário intitulado Filho de boi, também sobre o universo circense. Que Paula Gomes siga firme contra a correnteza!
Apesar de muitas vezes partirmos de pesquisas, é no fazer documental que descobrimos a história e, assim, o filme. Poderia compartilhar um pouco a experiência (muito especial, aliás) de “Jonas e circo sem lona”? Quais foram os maiores momentos de descobertas do filme?
Paula Gomes – Jonas e o circo sem lona foi uma experiência intensa, bonita, transformadora. Não só para o personagem, mas para nossa equipe também. O documentário é sempre um terreno de descobertas. A vida real como matéria-prima tem essa capacidade maravilhosa de nos surpreender, tirar do eixo, trazer à tona outras perguntas quando pensávamos já ter as respostas. Descobrimos durante o processo, por exemplo, que não podíamos ter pressa; que não estávamos ali somente filmando aquela história, também estávamos vivendo a história. E, ao descobrir isso, nos permitimos estar muito tempo sentados naquele quintal tomando café, conversando, ajudando em algumas tarefas da casa. Em várias jornadas, nós nem tiramos a câmera da mala! Só assim aquela polidez entre visitante e anfitrião foi se dissolvendo e dando espaço para que os conflitos emergissem e a narrativa apontasse seus caminhos. Além disso, durante o desenvolvimento do projeto, eu escrevi no papel muitas vezes: “Este filme não vai ter entrevistas”. Mas, num determinado momento das filmagens, Jonas quis conversar comigo. E nós conversamos. Eu ainda pensei que não íamos usar. Mas hoje para mim essas conversas são fundamentais para a história!
Ao contar a história de Jonas, o filme traz o fim da infância. Parece que a infância, na maioria das vezes, é retratada com muitas cores, só cheia de alegria. Você traz a dor de crescer no filme. Por que é tão dolorido deixar a infância?
Paula Gomes – Acho que crescer é como morrer um pouquinho. Porque a gente deixa de caber na gente, nas roupas, no corpo, na cabeça, nos sonhos... E daí todo o movimento que acontece é uma metamorfose bonita, mas também dolorosa. Como realizadora, me desafia e me motiva muito contar histórias do universo infantil, do universo jovem. Mas acho irresponsável quando vejo que a infância é retratada só com cores. Para mim, não se trata de construir um mundo que esconde os problemas. Mas um mundo que aponta para os problemas que existem e dá ferramentas para que nossos meninos o confrontem. Na filmagem de Jonas, eu me via ali, várias vezes, pensando, sofrendo: “E se o circo durasse só mais um pouquinho?”. Mas circos no quintal não duram para sempre.
A sua relação com o menino Jonas, hoje um rapaz!, perpassa todo o filme. Pode contar como vê a relação documentarista/personagem? Quais os desafios dessa relação?
Paula Gomes – O pacto, seja qual for, precisa ser claro, honesto. Esse é o desafio. Um documentário sempre fala de um encontro. O filme só existe porque diretor e personagem se encontraram num gesto, que pode ser de amor, de ódio, de dúvida. A experiência de realizar um documentário é sempre muito forte, porque a filmagem termina, o corte final fica pronto, mas o vínculo, a experiência que foi compartilhada naquele tempo em que você esteve ali tão perto dos personagens, vendo-nos crescer, temer, amadurecer, e crescendo, temendo e amadurecendo com eles, isso não tem fim. É muito bonito e muito especial. Jonas e sua família já eram pessoas que estavam pertinho de mim antes desse filme. Mas, depois do filme, ficamos mais fortes.
Jonas e o circo sem lona traz a dura realidade da educação brasileira. Uma educadora que conheço diz que a escola dispersa a gente da gente mesmo. Qual a sua análise a partir da experiência do Jonas e do filme? Como está Jonas hoje com essa questão? (Essa desilusão com a escola eu percebi já em Sonhos - e adorei)
Paula Gomes – Aqui no nosso coletivo a gente fala que somos todos Jonas, rs. Porque também estamos desde a infância nadando contra a maré, sentados no fundo da sala, ou tentando fazer filmes dentro de um sistema que te diz o tempo todo “seja médico, seja advogado, faça concurso, tenha um emprego”. A escola tem um papel importante nisso, porque muitas vezes não contempla os alunos em sua diversidade. A escola deveria alimentar sonhos e não os castrar. Claro que tudo isso não é fácil. Claro que existem professores incríveis lutando todos os dias por isso. Não se trata de generalizar. Mas acho importante questionar a educação sempre e quando ela não forma jovens que questionam. Nosso processo de filmagem foi longo; então, ao longo de dois anos, Jonas mudou, sua professora também mudou. Foi bonito ver que eles aprenderam, um com o outro. A luta por manter Jonas na escola continuo depois do filme. Ele está no último ano agora, quer fazer faculdade de cinema!
As histórias da Plano 3 Filmes trazem um pouco do Brasil profundo, além dos grandes centros urbanos. Da onde vem esse desejo de vocês de seguir por essas trilhas?
Paula Gomes – Nós somos da Bahia. Minha família vem do sertão. A gente cresceu vendo nas telas histórias que não têm nada a ver com a vida da gente – a zona sul carioca, a periferia de São Paulo, sem contar todas aquelas séries enlatadas gringas. Quando desde a infância passam a vida contando pra gente que nós não estamos no centro, que nós não somos protagonistas, a gente pode acabar acreditando. Isso é perigoso. Então nossa luta sempre foi por contar nossas próprias histórias, trabalhando a universalidade, mas sempre retratando esse pedaço de Brasil de onde viemos.
Agora estão trabalhando em longa-metragem de ficção, certo? Pode contar um pouco do projeto e em que etapa ele está?
Paula Gomes – A gente tá trabalhando na finalização do nosso longa de ficção Filho de boi (direção de Ernesto Molinero e Haroldo Borges), que é um projeto que amadureceu muito depois de Jonas e o circo sem lona. A gente encarou o processo dessa ficção quase como um documentário. Antes de começarmos a filmar, realizamos um grande laboratório, envolvendo todos os setores criativos do filme, para trazer verdade ao projeto. Conhecemos 1.500 meninos do sertão da Bahia na busca pelo protagonista. A nossa preparação de elenco, que foi feita por Fátima Toledo, entrou aí também. Foi um processo incrível. A gente não queria só filmar o que estava escrito no papel nem cumprir cronograma de seis semanas de filmagem. A gente queria viver aquela história. Então nós fomos para o sertão e vivemos essa história. O filme é resultado disso.