A chuva é nuvem que vira água. Escorre do céu à terra. No chão, vira poça, riacho, lago, cresce feito mar. Está em constante transformação, é metáfora do crescimento. Intenso curso da vida. Assim acontece em A família Dionti, longa-metragem dedicado ao público infantojuvenil dirigido por Alan Minas que entra hoje em cartaz nos cinemas do país.
A história: a família é abandonada pela mãe, e o pai fica com os dois filhos. O caçula, Kelton, apaixona-se por uma menina de vida circense e alma nômade que chega em sua cidadezinha. O menino transpira amor e, literalmente, vai aos poucos se derretendo por conta desse tão arrebatador sentimento. Já o irmão mais velho, Serino, está tão ressequido por dentro que só chora terra. Em tom de realismo mágico, ambientado num lugar guardado no Brasil profundo, o filme fala das perdas e dos amores, das mortes e dos renascimentos de uma família comum.
“É uma família que sobrevive em local ermo, isolada. Longe da cidade, de intrusos e do tempo. Todos seguem suas rotinas a olhar o futuro, mas atados ao passado, à mãe que partiu por causa de um outro amor”, conta o diretor. O filme, ele complementa, “fala do vozerio do silêncio, da não-palavra e dos gritos sutis que a todos apavoram”. É um filme sobre a vida e suas ininterruptas mudanças, tal qual o curso de um rio. Segue num ritmo próprio, nada acelerado, tal qual pouco (ou nada) acontece nas produções audiovisuais voltadas a esse público. É um convite à contemplação.
No filme, a perda, o choro, a solidão e a saudade, costumeiramente ligados ao universo feminino, margeiam o mundo masculino. Na história, não é o homem quem parte, mas, sim, a mulher, a mãe quem vai embora. Ali é o mundo masculino que transborda de sentimentos. “Essa inversão de foco realoca o homem e o coloca diante do seu eu, quando ele, então, fica cara a cara com o machismo, com essa zona de conforto erigida através de gerações”, explica Alan. Afogado em mágoas, o pai, Josué, interpretado com maestria pelo ator Antônio Edson, o Toninho, do mineiro Grupo Galpão, espera pelo retorno da mulher amada – nem que seja em formato de chuva.
Já é a ternura que envolve a relação entre Kelton e Sofia, uma menina recém-chegada na cidade. Ela não gosta da escola – “branca demais”. Kelton concorda. Juntos, exploram alguns cantos daquele pedaço de chão, onde uma pedra não é uma pedra, mas, sim, o cotovelo do mundo. Nas idas e vindas do jovem casal, há sempre uma placa, que aponta para dois lugarejos dali, Angustura e Dores da Vitória. Cada um ruma para um lado.
Qual a importância de falar de amor ao público jovem? “O fluxo do sentir nos percorre o corpo e a alma desde a gestação. Está marcado em nós, mesmo sendo anterior à memória. É uma outra língua”, explica o diretor, que, em seu trabalho, recorre a uma linguagem outra, da prosa poética de Guimarães Rosa e Mia Couto, da poesia de Manoel de Barros, do realismo fantástico de Gabriel García Márquez. Brinca com imagens de realidade e ficção. Como inspirações de construção imagética e de gramática visual, cita Abbas Kiarostami, Emir Kusturica, Theos Angeolopoulus, Karin Ainouz e Marcelo Gomes.
Ao crescer, a gente morre um pouquinho, parece sussurrar aos jovens essa história de amor. Num encontro com educadores em São Paulo, no Clube do Professor, o diretor chamou a atenção para as diferenças entre amadurecimento e endurecimento. E brincou: “É preciso ter um potinho mágico guardado no bolso para não endurecer”.
É uma história universal, ambientada num lugar esquecido dentro de nós. Atemporal. No hoje, somos todos Dionti. “Parece, no primeiro momento, uma família atípica. Mas toda poesia e realismo mágico que permeiam a história revelam conflitos e desejos pelos quais cada ser humano se depara durante a vida. Acho que esse divertido castelo de espelhos reflete as distorções que nada mais são do que nós mesmos”, conclui o diretor, que nos faz lembrar que somos todos natureza. Ou, como bem diz Josué, o pai do menino que se derrete de amor: “Todo mundo é feito de água”.