O mel que nutre a infância

20/06/2017

Quando lemos ou ouvimos uma história, abrimos um portal que nos conecta com um outro mundo, um outro tempo. O encantamento da palavra leva as pessoas a um lugar interno onde o tempo deixa de ser linear. Quando adentramos esse universo, a experiência é a de visitar a nossa “paisagem interna”. Quem nos guia por esses mundos são heróis destemidos, criaturas fantásticas e princesas nem sempre indefesas, entre outros personagens que habitam narrativas que há tempos nos acompanham.

Assim explica Regina Machado, contadora de histórias e pesquisadora de contos tradicionais, aqueles transmitidos oralmente e tão antigos que não e sabe mais quem os criou. No tempo da cronologia, as regras restringem o que podemos ou não fazer. Nesse universo outro, não. “Ali tudo pode ser e acontecer e, nesse sentido, eu paro a minha ação cotidiana, governada pela lógica da linearidade, e sou levada para um outro lugar.”

 

Ilustração: Marcelo Tolentino

 

Esse contato interno traz um universo de possibilidades, expande os horizontes de cada um de nós. Ao acompanhar o trajeto desse personagem, é possível compreender melhor o percurso da própria vida. Para ilustrar, a pesquisadora lembra um episódio curioso, em que contava história para uma menina que tinha deficiências, não sabia falar nem andar muito bem.

“Uma vez contei para ela uma história que dizia assim: ‘Era uma vez uma princesa. Na hora, imediatamente, colocou a mãozinha no peito e falou: ‘Eu’. E eu disse: ‘Seu pai, o rei’. E ela disse: ‘Meu pai’. E é como se ela estivesse expressando aquilo que passa dentro da psique das pessoas. E ela não tinha nenhum tipo de censura que a impedisse de falar. Ao dizer isso, ela saiu direto da sua própria experiência.”

O ato de ouvir histórias está inscrito numa “experiência de alargamento”. “É como se eu contasse para mim mesma minha própria história de um jeito que eu nunca contei.” E o contato com esses contos tradicionais proporciona “uma qualidade de contemplação, de escuta, de olho aberto para ver as coisas que ninguém está vendo”.

A riqueza da experiência proporcionada pelas narrativas da tradição oral é maior que qualquer outro benefício pedagógico. Ela até cita benefícios aos que entram em contato com essa arte: o conhecimento de outras culturas, a aprendizagem do silêncio e da escuta, o recebimento e a conversa sobre esses os valores transmitidos nessas histórias. “Mas o que eu considero valoroso é o que nos mostra como a história tem uma função na experiência daquela pessoa, que não é só psicológica, ela é múltipla em cada criança.”

Originalmente, essas narrativas milenares eram importantes ferramentas de  transmissão de conhecimento. E viajaram no espaço, sendo possível encontrar no sertão do Cariri contos vindos da Ásia. Viajaram também no tempo, chegando ao mundo ocidental do século XXI, em que a cultura oral disputa espaço com o mundo letrado. Onde ela se preserva? Na narração de histórias, de pai para filho, este ato individual.

“Quando a criança tem a oportunidade de escutar um conto, é como se ela fosse alimentada com um leite muito poderoso, com um mel, que vai ficando dentro dela como imagem de coisas valorosas”, explica. “Isso é ouro para a formação das crianças e das pessoas do mundo em que vivemos hoje. Eu acho que é o melhor tesouro, o melhor depósito de palavras raras, de palavras valorosas, de palavras que brilham.” É uma forma de prepará-las, em meio a tantos desafios, para tornarem-se adultos conscientes e críticos.

A trajetória da contadora de histórias começa nos estudos dos contos tradicionais nos idos da década de 1970. Ela conta que, na época, não conhecia ninguém que se denominasse propriamente como um “contador de histórias”, apenas educadores que seguiam a prática nas escolas. No fim daquela década, ela mesma começaria a narrar histórias da tradição. Conheceu a primeira pessoa que para ela se denominava dessa forma: Giba Pedroza. Na época, ele tinha seus 20 anos. Com o tempo, a quantidade de contadores de histórias foi aumentando, e a prática foi se banalizando.

E como contar, então, uma boa história? Existem infinitas técnicas, mas nenhuma dará conta da grandeza de uma boa história se o contador não estiver ali por inteiro naquele momento, com a real vontade de contá-la. Para se preparar, a pessoa pode entrar em contato com a narrativa anteriormente, imaginar como os trechos devem ser ditos, quais imagens são apresentadas.

Para a narradora de histórias, não há uma fórmula. “A pessoa tem que se dispor como a criança se dispõe a entrar em contato com essa substância, porque é isso que vai dizer para ela como contar essa história. Se não tiver isso, não adianta.” E complementa: “Os melhores pais e mães que contam histórias para os filhos são aqueles que se divertem junto”.

Pergunto à Regina sobre sua história favorita no momento. Ela vacila, sem saber ao certo qual escolher dentre as tantas narrativas com as quais já entrou em contato. Chega a citar algumas com que tem trabalhado recentemente, mas uma especial está guardada na ponta da língua. “Eu tenho uma história que me acompanha há tempos, que eu já contei mais de mil vezes.” É o conto intitulado Fátima, a fiandeira. “Essa história é a da minha vida inteira”, conclui, lembrando essa narrativa da cultura Sufi, que remete os percalços para encontrar a felicidade.

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